WorldbuildingEste é o décimo sétimo de 30 artigos sobre construção de mundos escritos por Stephanie Cottrel Bryant e traduzidos por muá, Diogo Ruan Orta. Publicado em 2007 para participantes do NaNoWriMo, este tutorial prático e baseado em livros sobre o tema permanece uma ferramenta útil.

No exercício anterior, nós focamos nos limites dos elementos especulativos de nosso mundo. Hoje vamos revisar a ambientação em busca de incompatibilidades. Pegue seu caderno e um relógio aí e separe alguns minutinhos para a leitura e o exercício do dia.

Quer mais dicas? Vá ao perfil WattPad do T. K. Pereira e procure por um livrinho chamado Guia do Construtor de Mundos. Recomendo dar uma conferida, já que os textos de lá complementam os deste tutorial – sim, foram escritos pela mesma autora. Segue o chefe por lá pra ficar por dentro.

30 Dias de Construção de Mundo, por Stephanie Cottrell Bryant
Dia 17: Revisando a Ambientação

Twillight - Edward - Sparkling VampireÀs vezes você começará com uma boa ambientação para sua história – talvez, um mundo pós-apocalíptico repleto de tecnologias decadentes e dominado por vampiros. E então, talvez pelo desafio ou para dispor de certa conveniência de roteiro, você decide que os altos níveis de raios ultravioleta em seu mundo obrigam os vampiros a vestirem cores claras para evitar a própria destruição.

Pronto, agora você tem um mundo pós-apocalíptico tétrico e futurista onde vampiros zanzam por aí… em tons pastéis. Pois é. Eis um grande exemplo de ambientação planejada com cuidado que acabou destruída por uma escolha autoral descabida.

As incompatibilidades na ambientação ocorrem o tempo todo na ficção, ainda mais na ficção especulativa. Elas também estão presentes nos filmes – quantas vezes você saiu de um cinema sem saber se o diretor estava tentando fazer uma comédia ou uma ficção científica séria? Esse é o problema de não se enquadrar a história num gênero, mas também de não identificar sua ambientação ou de ater-se a uma.

Às vezes, os desajustes na ambientação funcionam muito bem, e, em enredos secundários, tais desajustes podem evidenciar o enredo principal (os personagens coadjuvantes cômicos podem aliviar uma história trágica, por exemplo). Além disso, a boa literatura pode ser qualquer coisa, até mesmo vampiros vestindo tons pastéis. Contudo, o foco aqui são os elementos principais do seu romance e você quer que eles se entrosem o máximo possível.

Exercício de Hoje:

Pegue a lista de adjetivos relacionados à ambientação do seu romance – você a escreveu lá no exercício do dia 3. Você usou essa lista para descobrir o clima de seu cenário, e para refinar um pouco seus nomes. Leia os adjetivos em voz alta.

SOS - Tem um Louco Solto no Espaço - YogurtDepois, pegue as anotações sobre seus elementos especulativos. Leia essas regras em voz alta. Tente descrever como seus elementos especulativos funcionam no seu romance. Como você se sente ao descrevê-los? Tem vontade de gargalhar? A não ser que você esteja escrevendo uma comédia, é bem provável que este seja um desajuste. Sente-se incomodado? Se seu objetivo é ser sombrio e gótico, então bom trabalho!

Confira também o nome dado ao seu elemento especulativo. Não interessa se você o batizou de “Força”, “mana”, “motor de dobra”, “naves luminescentes”, “cyberrede” ou “lican”, o nome do seu elemento especulativo impacta o modo como seu leitor se sentirá a respeito dele. Diga o nome em voz alta e decida se o que você sente é o mesmo que quer transmitir ao seu leitor.

Certos nomes e conceitos especulativos serão bem neutros e podem não ter qualquer impacto na ambientação do seu romance. “Magia” é genérico o suficiente para exigir mais descrição, caso seus personagens a encontrem ou utilizem em seu romance. Por outro lado, “Mágika” implica mistério, algo enigmático.

Renomeie ou retrabalhe seus elementos especulativos e as regras destes, se precisar.

Exemplos:

Eis três exemplos, um de cada gênero de ficção especulativa, onde o elemento especulativo se ajusta à ambientação da obra.

Exemplo Um: Ficção Científica

Assisti a Alien: A Ressurreição neste fim de semana e decidi que este é um bom filme de ficção científica. Não é exatamente terror, como Alien: O Oitavo Passageiro e Aliens: o Resgate, mas sim um bom filme de ficção científica. Houve diversos momentos em que algo foi explicado – alguns elementos da biologia dos aliens ou de Ripley foram explicados de maneira científica (ou pseudocientífica, caso você esteja indisposto a aceitar a premissa original de que Ripley e a rainha alien poderiam ser clonadas).

O elemento especulativo estabelece que Ripley e a rainha alien poderiam ser clonadas, porém, isso resultaria na mistura de seus DNAs – um pouco de Ripley seria herdado pela rainha, e vice-versa.

Alien: Resurrection - Ripley - Sigourney Weaver

Cena icônica de “Alien: A Ressurreição”.

Esse elemento de mistura entre o humano e o monstro se repete várias vezes, de modo que a ambientação deste filme é sombria e angustiante, e lida com o conflito interno e com a reconciliação do eu com o outro – e os momentos de reconciliação surgem de formas quase eróticas. Tal conflito é destacado com frequência nas cenas, em especial naquela que é a mais memorável, a Sala 1-7, onde Ripley confronta os clones defeituosos, combinações distorcidas de si mesma e da rainha, medonhas e perturbadoras, mas também passivas de compaixão.

Exemplo Dois: Fantasia

Os livros e filmes de Harry Potter são um excelente exemplo de um elemento especulativo que contribui para a ambientação. A magia aqui é escancarada e quase inteiramente conhecida. Você aprende feitiços que outros magos já conhecem. As feras mágicas têm poderes especiais – mas tais poderes são conhecidos e reconhecíveis.

Há poucos mistérios reais sobre como a magia funciona neste mundo, ao menos para seus praticantes mais experientes. Dumbledore nunca diz “eu não sei como fazer isso, Harry”. Ao mesmo tempo, os problemas enfrentados por Harry são conhecidos e reconhecíveis – Voldemort é um inimigo conhecido e precisa ser confrontado por Harry em cada livro. Os valentões na escola são conhecidos – e Ron nunca trai Harry.

Navegar pelas regras complicadas de Hogwarts é um conflito secundário nos livros, e só destaca ainda mais o tema principal: aprender como operar dentro das regras (e, às vezes, fora delas) para ser vitorioso contra alguém que as violou. A propósito, Harry Potter é também um bom exemplo de contraponto à incompatibilidade: muitos itens mágicos e feitiços têm nomes e funções cômicas, e as tramas paralelas relativas a eles servem para tornar o enredo geral acessível às crianças.

Exemplo Três: Terror

The Blair Witch ProjectOs bons filmes de terror devem fazer o público saltar da cadeira de tanto medo. Um dos meus favoritos é A Bruxa de Blair. Não só por ter sido um filme inovador, mas porque ele estabelece a ambientação perfeitamente.

Em momento algum o público sabe o que está acontecendo de fato – e nem os personagens. A força que os confronta é poderosa, incognoscível, enigmática – a ambientação lida com o terror desconhecido. Você nunca VÊ a bruxa – de fato, a impressão visual mais poderosa surge no final do filme, e serve como a única explicação para o que está acontecendo.

Muitas pessoas assistem ao filme e não o entendem porque suas pistas e sugestões são muito pequenas, e deixar escapar apenas uma delas significa perder toda a explicação (a qual nunca é verbalizada).

Em filmes de terror onde o protagonista vence, a explicação tem de vir antes do clímax, mas a ambientação, na verdade, muda nesse ponto, deixando de ser terror verdadeiro. Uma história do gênero que nunca explica por completo o elemento de terror conserva sua ambientação pela simples virtude de nunca deixar o leitor saber o que está acontecendo.

Amanhã tem mais exercício! Quer compartilhar o seu? Use os comentários. 😉


Os exercícios de construção de mundo estão sob uma licença Creative Commons que permite tradução, distribuição para grupos de escrita, venda (com permissão), reimpressão (para uso não comercial) ou cópia exata, todos com os devidos créditos à autora do texto original, Stephanie Cottrell Bryant.

Esta tradução NÃO pode ser distribuída de forma alguma senão em trechos curtos dos textos (até 100 palavras), desde que seja visivelmente dado crédito ao tradutor (Diogo Ruan Orta) e desde que haja um link direcionando para o site Escriba Encapuzado.

Favor respeitar o trabalho árduo de tradução do amigo Diogo.


Para saber mais:

  1. Dia 16: Limites Especulativos – 30 Dias de Construção de Mundo: neste décimo sexto exercício da série, veremos uma série de recursos complementares para a construção de seu mundo..

Especial NaNoWriMo:

  1. 30 dias para escrever um livro – saiba mais sobre o evento no primeiro artigo da série sobre o evento.
  2. As críticas e o valor do desafio – saiba porque o evento é visto com desconfiança por escritores e demais profissionais do mercado editorial.
  3. Como escrevi um livro em 30 dias – onde detalho minha participação no evento em 2012.
  4. Diário de escrita – onde falo sobre valor de se manter um diário e compartilho o meu próprio.
  5. Guia de sobrevivência – dicas para aqueles que ousarem aceitar o desafio!
  6. National Novel Writing Month: página oficial do evento (em inglês).