Saiba antes de ler: este post ficou tão grande que foi dividido em duas partes complementares. Talvez o leitor não tenha paciência para ler tudo, mas eu precisava escrever sobre esse filme.

“Passado. Presente. Futuro. Tudo está conectado.” Esta é a instigante premissa de A Viagem, a nova produção dos irmãos Wachowski (Matrix) que estreou recentemente nos cinemas. Na expectativa de uma experiência, no mínimo, surpreendente, fui conferi-la na semana passada.

Ainda que a história não tenha sido exatamente a que eu tinha em mente, não me desapontei ao término de suas quase três horas. A decepção veio no dia seguinte.

Deixei o cinema sem saber exatamente o que pensar. Decidido a tentar decifrar o filme, topei com o livro que o inspirou e foi aí que perdi muito do meu fascínio. Antes de expor as razões de meu desencantamento, porém, quero compartilhar considerações sobre ambas as obras.

Atenção: adiante há revelações sobre os enredos (spoilers).

Sobre o livro

Escrito pelo britânico David Mitchell e publicado em 2004, Cloud Atlas (Atlas de Nuvens, em tradução livre) apresenta seis contos que conduzem o leitor desde o Pacífico Sul do século dezenove até um futuro pós-apocalíptico longínquo. A obra é um quebra-cabeça. Primeiro, o autor inicia e interrompe cada um de cinco contos antes de sua conclusão. O sexto conto é o único narrado do princípio ao fim, quando, então, os seus antecessores são retomados em ordem cronológica reversa.

A grande sacada de Mitchell é encerrar cada conto com o protagonista lendo ou observando a história cronologicamente anterior a sua, o que estabelece o elo entre as narrativas – através de um diário ou de um filme, as histórias repercutem pelo tempo e o espaço. Deste modo, a viagem do leitor termina exatamente onde começou: no Pacífico Sul do século dezenove.

A estrutura do livro não é tão confusa quanto parece (clique para ver).

Estão presentes no livro esta interligação em forma de legado e a questão da reencarnação – a exceção de um, os protagonistas dos contos trazem uma marca de nascença que os identifica como uma mesma alma incorporada em outra vida. Mas esses temas não são o foco de Cloud Atlas.

Segundo o autor, a obra trata da predação de “indivíduos por indivíduos, grupos por grupos, nações por nações, tribos por tribos” que, retratada em diferentes contextos (épocas), explicita seu caráter eterno, recorrente. Mitchel diz ser possível inferir tal interpretação do título: “as nuvens seriam as manifestações mutáveis do Atlas, que por sua vez representa a natureza humana imutável” (?!). A reencarnação, por exemplo, “é só um símbolo (…) da universalidade da natureza humana”.

Em se tratando de recorrências, há as que se destacam ao longo da obra: os movimentos de ascensão e declínio (explicitas na forma de escaladas e quedas ou implícitas em epifanias morais); a contestação da veracidade das histórias pelos protagonistas que as conhecem; e a citação ao número seis (a música que é um sexteto, o personagem que é chamado Sixsmith, a dívida de sessenta mil libras, os seis catecismos dos clones).

Sobre o filme:

Cloud Atlas era considerado por muitos como um livro impossível de adaptar para o cinema. O próprio Mitchell reconheceu que sua estrutura aninhada, de uma história contida em outra, era rígida demais para a telona. A solução encontrada pelos Wachowski foi apresentá-las em paralelo, intercalando-as nos momentos em que as similaridades de situações explicitavam as ligações e recorrências – por exemplo, nas cenas de confronto contra o vilão de cada história.

A sugestão de ressurreição também está presente aqui, mas de modo exacerbado – e até mal pensado. Não só há ênfase na marca de nascença que surge em diferentes protagonistas ao longo das épocas, mas os atores também se tornam recorrentes, alguns interpretando personagens completamente diferentes, outros representando sempre um mesmo arquétipo (o vilão, o oportunista).

Os atores se revezam, surpreendem e divertem em papéis diversos.

Em Cloud Atlas, dois contos apresentam certo aspecto de romance: a do jovem músico e a do clone que se revolta contra o sistema. Em A Viagem, o amor está em toda parte e surge como mais uma característica que interliga as histórias – e a maioria dos desfechos é encerrada com um par romântico estabelecido. Assim, o filme torna-se uma experiência mais sentimental que o livro.

Essas são as principais diferenças entre as obras. Obviamente, há outras que incluem desde a ênfase na luta pela liberdade, a mudança do nome de ao menos um personagem, a remoção de trechos existentes e a inclusão de outros inexistentes no livro de Mitchell (veja na parte dois do texto o link para um interessante artigo que identifica estas e outras diferenças).

Afinal, o que você achou do filme, ô do capuz?
Leia a parte 2 e descubra.