Autor: T. K. Pereira (Página 16 de 21)

T. K. Pereira é escritor de coração e analista de sistemas por necessidade. Sob o manto do Escriba Encapuzado, idealizou o projeto 7 coisas que aprendi, foi finalista do concurso literário Brasil em Prosa 2015, e publicou contos em antologias diversas. Vozes (2019) é seu primeiro livro de contos solo.

Ghost Writer: Podcast para Leitores e Escritores

Você busca dicas de boa leitura? Tem curiosidades sobre o mercado editorial? Quer conhecer os segredos de escritores publicados? Então ouça o Ghost Writer (GW), uma valiosa fonte para os aficionados por literatura e para aprendizes de escritor.

Fruto da colaboração dos cariocas Ricardo Herdy e Raphael Modena, o podcast se destaca pela informalidade, pelo carisma dos apresentadores e seus convidados e, claro, pelo conteúdo de qualidade.

De periodicidade (quase) quinzenal, o GW conta com 20 episódios lançados. Entre os tópicos discutidos figuram as influências na formação de leitores e escritores, a publicação do primeiro livro e as recomendações de livros marcantes na vida de participantes especialíssimos – o que representa um pesadelo para os que mantêm listas de leituras futuras, diga-se.

Aprendendo com os melhores…

Se você faz parte dos bravos que trilham o caminho do escritor, preste atenção às entrevistas com autores, editores e demais envolvidos no mercado editorial: todas trazem dicas preciosas.

Recomendo especialmente as palavras de André Vianco (Sétimo, O Turno da Noite), Fábio Yabu (Combo Rangers, As Princesas do Mar), Leonel Caldela (O Inimigo do Mundo, O Caçador de Apóstolos), Luis Eduardo Matta (120 Horas, As Bem Resolvidas), Raphael Draccon (Dragões de Éter, Fios de Prata) e Marcelo Amado, da Editora Estronho.

Também há entrevistas com Eduardo Spohr (A Batalha do Apocalipse; Filhos do Éden); Carlos Eduardo Klimick (O Desafio dos Bandeirantes; Era do Caos), Carolina Munhóz (A Fada, O Inverno das Fadas), Renata Ventura (A Arma Escarlate) e outros.

Ultimamente, o GW tem se dedicado a tratar da vida e obra de escritores renomados, como Ray Bradbury, o mestre Stephen King e o brasileiro Ryoki Inoue, o autor mais prolifico do mundo, com mais de 1000 livros publicados. E pensar que ainda há tantos nomes de peso que renderiam muitas horas de debates.

Para escutar em qualquer lugar

Os episódios podem ser escutados on-line ou baixados em formato .MP3 diretamente do site do podcast. Quem quiser manter contato com seus idealizadores também pode acompanhar o Twitter, a página no Facebook ou enviar um e-mail aos mesmos. E para os aficionados também por tecnologia vale citar que o GW também está disponível no iTunes.

E se você for de Gana, por favor, não deixe de entrar em contato com o Herdy e o Modena. Eles têm recebido inúmeros visitantes ganeses, mas ainda não receberam um alô sequer dos ouvintes de lá.

Em tempo: a equipe do GW agora conta com a participação de um locutor profissional; Lucas Amura veio para dar ainda mais qualidade a um projeto que evolui a olhos vistos.

Conheça o Ghost Writer

Site: programagw.podomatic.com

Email: programagw@gmail.com

Twitter: @programagw

Facebook: Podcast Ghost Writer

itunes: Podcast Ghost Writer

Guia de Episódios – 1 ao 20

Episódio Zero – Apresentação

Ricardo Herdy e Raphael Modena apresentam seu projeto.

Episódio 1: A influência do RPG na formação do leitor

Com Eduardo Sporh e Carlos Eduardo Klimick

Episódio 2: Um papo literário com Luis Eduardo Matta – Volume 1

Episódio 3: Um papo literário com Luis Eduardo Matta – Volume 2

Episódio 4: Entrevista com o escritor Leonel Caldela

Episódio 5: Listas – Cinco livros que marcaram nossas vidas

Com Luis Eduardo Matta e João Carlos Batista

Episódio 6: Entrevista com Raphael Draccon

Episódio 7: Neil Gaiman (quadrinhos)

Com Nicole Mezzasalma e Mauro Trevisan (Dr. Careca!)

Episódio 8: Publicando o Primeiro Livro

Com Eliane Raye e Marcelo Amaral

Episódio 9: A influência de Harry Potter na formação de escritores

Com Carolina Munhóz e Renata Ventura

Episódio 10: Listas 2 – Cinco livros que marcaram nossas vidas

Com Eduardo Spohr, Raphael Draccon e Leonel Caldela

Episódio 11: Entrevista com Fábio Yabu

Episódio 12: Ilustradores Escritores

Com Dennis Vinicius, Nanuka Andrade e Marcelo Amaral

Episódio 13: Um papo com o Editor Marcelo Amado

Episódio 14: Entrevista com o Escritor André Vianco

Episódio 15: Listas 3 – Cinco Thrillers que marcaram nossas vidas

Com Eliane Raye e Luis Eduardo Matta

Episódio 16: A vida e a obra de Ray Bradbury

Com Alvaro Domingues e Cesar Silva

Episódio 17: A vida e a obra de Stephen King – Volume 1

Episódio 18: A vida e a obra de Stephen King – Volume 2

Com Affonso Solano, Eduardo Spohr e Raphael Draccon

Episódio 19: Entrevista com Ryoki Inoue – Volume 1

Episódio 20: Entrevista com Ryoki Inoue – Volume 2

Com Luis Eduardo Matta

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Para saber mais:

  1. O que é um podcast: descubra neste artigo no site Leitor Cabuloso; aproveite e conheça podcasts de temas diversos.
  2. Entrevista com Herdy e Modena: os criadores do Ghost Writer falam sobre seu projeto no excelente site podLer.
  3. Papo na Estante: embora não seja atualizado há algum tempo, este podcast literário conta com episódios interessantissímos.
  4. LiteratusCast: podcast literário do site Homo Literatus; atenção especial aos episódios da série Vida de Escritor.
  5. O que é um Ghost Writer: saiba mais sobre esta profissão (sim, isso mesmo) no site da Exame.
  6. André Vianco: site do autor de Os Sete, Sétimo, O Senhor da Chuva, O Turno da Noite e muitos outros.
  7. Carlos Klimick: site do autor de Desafio dos Bandeirantes, Era do Caos e outros.
  8. Carolinha Munhóz: site da autora de A Fada e O Inverno das Fadas.
  9. Editora Estronho: site da editora de Marcelo Amado.
  10. Eduardo Sphor: site do autor de A Batalha do Apocalipse, Filhos do Éden – Herdeiros de Atlântidas e Protocolo Bluehand – Alienígenas.
  11. Fábio Yabu: site do autor de Combo Rangers, Princesas do Mar e outros.
  12. Lucas Amura: site do locutor profissional e novo membro da equipe do podcast Ghost Writer.
  13. Luis Eduardo Matta: site do autor de Conexão Beirute-Teeran, 120 Horas, Morte no Colégio e outros.
  14. Raphael Draccon: site do autor da trilogia Dragões de Éter, Espíritos de Geloe Fios de Prata.
  15. Ryoki Inoue: site do escritor mais prolífico do mundo.
  16. Ryoki Inoue Produções: site da editora de Inoue; oportunidade para escritores em busca da publicação.

13 microcontos

Como prometido, eis treze microcontos que publiquei em meu perfil no Twitter no passado. O leitor notará que há histórias de todos os tipos: fantasia, terror, ficção científica, contemporâneas. Algumas nasceram de modo inusitado (durante uma ida ao banheiro, por exemplo). Espero que gostem.

1

Saudades mil de minha paixão juvenil. Anda, mulher, não demora, não vê que o nosso filho acordado agora chora?

2

– Usei esta corda para me enforcar – disse a figura arroxeada.

– Bom. Que tal pô-la ao redor do pescoço? Perfeito! Agora diga “xis”!

3

– Nossos pais nunca abençoariam nosso amor. Matá-los e casarmo-nos uniu os reinos sob NOSSO poder e… argh!

– MEU poder, meu rei!.

4

06/2012, 66º tentativa de viajar no tempo: fracasso; portal danificado. Sem efeitos cola-

06/2012, 66º tentativa de viajar no tem…

5

Invejava o amigo e o matou; invejou a comoção da mídia e tramou a própria morte. Dado por desaparecido; foi enterrado como indigente.

6

– Ninguém vive aqui; o mestre é um morto-vivo! Tuas almas concederão vida a ele!

E os olhos deles se fecharam para nunca mais abrir.

7

Adoecido, não foi banido por ser herói da tribo; sobrevivente, não foi devorado pelo inimigo; fugido, morreu diante da vila portuguesa.

8

No banheiro.

– Com mais força, anda! Rápido!

– Se a esposa vê isso…

– Esfrega mais!

A porta se abre.

– Café na blusa de novo?

9

Descontente, demitiu-se, farreou, conheceu e transou com uma bela mulher e sua irmã, saltou de paraquedas e… acordou caindo da cama.

10

– Tua espada este corpo matará, mas em ti eu perdurarei!

Da prisão mental, testemunhou o massacre da vila por suas próprias mãos.

11

O Novo Mundo era a salvação; o bandeirismo a chance de aventura. Encontrou só morte e destruição, e na prisão chafurdou na amargura.

12

A cidade é dos invasores. Os tiros ecoam lá de baixo, os refugiados chegam em levas; no Morro todos estamos salvos, ao menos por ora.

13

– Expulsei os inimigos, defendi o reino, tornei-me campeão de nosso Deus! Eu sou a lei!

– Alimente os gatos.

– Sim, minha rainha.

Para saber mais:

  1. Contos para ler durante o cafezinho: artigo onde falo um pouco sobre microcontos (vale a pena conferir as muitas referências por lá).

Contos para ler durante o cafezinho

Imagine contar uma história em um único parágrafo. Este é um desafio ao qual se lançam os escritores de microcontos, gênero pouco difundido fora do universo digital da Internet.

Topei com a primeira referência a esses há mais de um ano: em entrevista a um jornal, o escritor pernambucano Marcelino Freire almejava publicar mil contos no Twitter – cada um deles com não mais do que os 140 caracteres permitidos.

Um microconto é uma narrativa curta, mas sua essência não é a extensão, é a concisão: deve-se transmitir uma mensagem clara utilizando poucos recursos. A ideia é fascinante, mas não é novidade. O hondurenho Augusto Monterros (1921-2003) escreveu O Dinossauro com apenas sete palavras: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”. O escritor americano Ernest Hemingway (1889-1961) elaborou uma história em seis palavras: “Vendo: sapatos de bebê, nunca usados” – curiosamente, ele dizia ser esta a sua melhor obra.

Em 2006, a revista Wired homenageou Hemingway com a publicação de várias historietas de seis palavras escritas por personalidades das artes como Alan Moore, Frank Miller, Kevin Smith, William Shatner, Stan Lee. Já no Brasil, Marcelino organizou, em 2004, uma coletânea intitulada Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século, com textos de Millôr Fernandes, Dalton Trevisan – dito precursor do formato no país –, e outros.

Embora desconheça publicações semelhantes, encontrei diversos sites e perfis no Twitter dedicados à escrita de microcontos, o que demonstra que este gênero tem atraído cada vez mais adeptos. Decidi participar da “brincadeira” e publiquei treze microcontos em meu perfil – aproveitando todos os 140 caracteres, obviamente.

Como isto faz tempo, eu os disponibilizarei no blog para a apreciação dos que não tiveram a chance de lê-los. Espero que gostem. A propósito: não tenho ideia se Marcelino alcançou sua meta, mas quem estiver disposto a garimpar suas historietas deve conferir o link de sua conta abaixo.

Microamostras

7 microcontos publicados pela Wired. Leia mais no site da revista.

Tempo. Inesperadamente, inventei uma máquina do”.

Alan Moore

“Tipo sanguíneo do bebê? Humano, principalmente”.

Orson Scott Card

“Kirby nunca tinha comido dedões antes”.

Kevin Smith

“Bombas-H lançadas; todos nós morremos”.

Howard Waldrop

“Dorothy: – Dane-se, ficarei por aqui.”

Steven Meretzky

“Clones exigem direitos: segunda Proclamação Libertária”.

Paul Di Filippo

“Com mãos sangrentas, eu dou adeus”.

Frank Miller

Para saber mais:

  1. Microcontos na era do Twitter: artigo publicado pela revista Carta Capital. Recomendadíssimo, principalmente por abordar as características do gênero.
  2. Prévia de Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século: leia alguns trabalhos da coletânea de Marcelino Freire no Google Books.
  3. Histórias muito curtas: artigo da revista Wired que reúne histórias de seis palavras escritas por diversas personalidades em homenagem a Ernest Hemingway (em inglês).
  4. Ossos do Ofídio: blog do escritor pernambucano Marcelino Freire.
  5. Marcelino Freire no Twitter: acompanhe o cotidiano do escritor pela rede social.
  6. Penates, por Tiago Morales: mais de 400 microcontos já publicados!
  7. Portal dos Microcontos: reúne links para sites de diversos escritores.
  8. Microcontos no Twitter: acompanhe, em tempo real, os textos publicados por vários escritores na rede social.
  9. Curta Conto: perfil no Twitter que reúne diversos microcontos.

Paixão Rubra – Conto

Adiante estava a deusa de meus delírios mais pervertidos. O corpo voluptuoso fulgurava como que envolto em chamas, o vestido a cair sobre sandálias que deixavam entrever pés delicados de unhas tingidas em sangue. Um rasgo generoso subia ao baixo ventre, revelando uma coxa farta e torneada, envolta numa segunda pele igualmente flamejante.

Adereços discretos de linhas intrincadas partiam da cintura e traçavam um caminho de curvas acentuadas que conduziam os homens à loucura. A perdição derradeira, porém, estava pouco acima, no decote farto. Além de onde se escondia, maliciosamente, o próprio mistério divino, revelava-se um único ombro desnudo. Preso por uma alça, o vestido era como uma zombaria: parecia querer romper-se e deslizar pela pele suave para desvelar a beleza absoluta.

Sob cílios longos e sombreados, olhos ávidos me desafiavam. Dentes alvos se faziam notar na boca entreaberta, os lábios como morangos maduros. Cabelos negros selvagens emolduravam a face sedutora. Com o intuito de tirar-me da inércia contemplativa, ela caminhou em minha direção, movendo os quadris numa dança suave e hipnótica.

Um aroma inebriante emanou de seu corpo e, súbito, vi-me perdido em pensamentos de pura luxúria. O perfume era um afrodisíaco: entorpecia os sentidos, afugentava a razão, lançava-me às raias da devassidão. De tão intoxicado, mal notei quando suas mãos tocaram as minhas, fazendo-as deslizar suavemente por seu corpo. O vestido era tão fino que me sentia a acariciar a própria pele nua.

Meus dedos viajavam por estradas curvilíneas. Seus lábios quentes iam por caminhos próprios e deliciosos em volta de meu pescoço. Fechando os olhos, entreguei-me ao pecado, à tentação em forma de mulher, saboreando cada sensação provocada pela colisão dos corpos ardentes. Mesmo nos momentos em que me percebia imerso numa escuridão extasiante, eu a podia ver, reluzindo à meia luz das velas, incandescente com as próprias chamas que nos cercavam.

Para saber mais:

  1. Libere a criatividade com propostas de escrita: saiba mais sobre propostas de escritas neste artigo que publiquei aqui no blog.

Vendo a vida passar – Crônica

De pé sob o sol escaldante, retiro o celular do bolso e confiro o relógio. Lá se vão mais quinze minutos da minha vida. Impaciente, busco a confirmação dos dígitos no visor: o motorista está atrasado, de novo. Praguejo em voz alta sem temer que me ouçam, afinal, não há vivalma no ponto.

De nada adiantou desembestar morro abaixo, resfolegando e pingando suor. Estranho como as coisas, às vezes, acontecem: tivesse seguido sem afobação, eu chegaria bem a tempo… de ver o ônibus passar à toda por mim, com o motorista a ignorar meus acenos frenéticos, como ocorrera tantas outras vezes.

Súbito me vem à mente certa lei universal; novamente questiono se seu formulador não teria percebido a existência de uma força oculta a permear a realidade com o propósito de galhofar conosco diariamente.

Outros cinco minutos me escapam. Olho em volta, suspirando pesadamente. Vejo o matagal alto e poluído, um vira-lata a vagar sem rumo, o caos barulhento da obra próxima; na estrada poeirenta, carros de vários tipos – mas nenhum ônibus – alternam-se em ambos os sentidos.

Noto um resquício de sombra projetada pela placa de identificação do ponto. Buscando seu abrigo, retiro a mochila das costas e apanho um livro. Permito-me entreter com a leitura por alguns minutos e percebo, tarde demais, um grande vulto vermelho e branco passar a mais de noventa por hora ao meu lado: o maldito ônibus!

Exasperado, espanto mais alguns minutos com meus impropérios. Guardo o livro com fúria e, respirando fundo, apanho o fone de ouvido do celular. Quarenta minutos mais tarde, a lista de músicas já se repete pela terceira vez. Comprometendo-me a atualizá-la o quanto antes, eu percorro as estações de rádio, mas nada me agrada.

Guardando o aparelho, noto a aproximação de um homem esbaforido, suado. Respondo ao seu cumprimento, mas evito como posso as suas tentativas de puxar conversa – não o conheço nem estou com saco para ouvir sobre suas dificuldades. Quando penso que sua insistência não terá fim, avisto ao longe o bendito ônibus.

O contentamento logo dá lugar à lamúria: uma multidão se amontoa dentro do veículo. Sem alternativa, submeto-me a mais esta provação. Espremendo-me, encontro espaço entre uma senhora com sacolas de supermercado jogadas aos pés e um gigante musculoso cujo cotovelo paira ameaçadoramente sobre minha cabeça.

Sem espaço para apanhar o celular ou o livro, nem disposição para conversas, permito-me a listar, mentalmente, as razões pelas quais detesto tanto as viagens de ônibus: passagens caras, veículos mal cuidados, desrespeito e incivilidade. Nada, porém, é pior que a inanidade, a total e absoluta falta do que fazer.

Quanto tempo precioso é perdido nas longas esperas e durante as viagens, prolongadas não só pelas paradas constantes, mas também pelo trânsito cada vez mais caótico das metrópoles. A lotação torna tudo mais penoso, afinal, com a atmosfera pesada de odores e calor e pessoas sendo atiradas pelas janelas, quem terá disposição para desfrutar de uma leitura, música ou boa conversa?

Minha mente é invadida pelas lembranças de atividades pendentes: as etapas do projeto, os estudos, a consulta ao médico, o favor ao amigo. Então, suspiro pelo que deve ser a vigésima vez naquela tarde e afasto qualquer pensamento. Inconscientemente, coloco-me num estado de torpor e torno-me como os demais passageiros, apenas outro zumbi a caminho do trabalho.

Por todo o trajeto restante, resigno-me a ver a vida passar através da janela suja.

Tragédia – Conto

Não sei bem como aconteceu, não me lembro. O mundo ao meu redor era lúgubre, cinzento, sinônimo de sofrimento e horror. Um tapete macabro de manchas e destroços estendia-se pela estrada úmida, conduzindo à forma arruinada do caminhão tombado.

O choque e a indignação se revelavam claramente nas faces de todos: moradores da região, motoristas que aguardavam a liberação do trânsito, membros das equipes de resgate. Somente eu tinha a expressão serena.

Próximo aos veículos de emergência, uma figura fitava o vazio com ar apalermado; notei um filete rubro a escorrer do alto de sua cabeça. Alheio à fúria que lhe era dirigida, ele parecia assimilar as consequências de sua imprudência. Testemunha solitária da tragédia, talvez até revivesse em algum lugar da consciência os momentos que a antecederam. Mas isso pouco me importava. A razão de eu ainda estar ali jazia metros abaixo da encosta à beira da rodovia.

O ônibus era uma sucata, um monte de ferro retorcido disforme. Por toda parte no terreno barroso se faziam notar mochilas, cadernos, uniformes. Aquela fora outra de tantas excursões de campo que eu havia promovido. Tinha sido educativa e, principalmente, divertida, como os passeios ecológicos devem ser. Quem imaginaria término tão brutal, a perda de tantas vidas?

A lembrança veio novamente, ligeira, retratando nitidamente a imagem do momento antes do turbilhão e da escuridão absoluta: despreocupadamente, todos dormiam um sono do qual, mal sabiam, jamais iriam despertar. Que infortúnio condenava-me a reviver instante tão triste e negava-me conhecer o milagre pelo qual minha vida fora poupada? Se aquilo era tudo o que a memória tinha a revelar, então o passado não tinha maior valor que o presente.

As horas se alongavam e eu observava o trabalho de resgate, sereno, esperançoso. Parte dos observadores se dispersou, equipes de televisão e rádio chegaram e partiram; o caminhoneiro atormentado foi levado pelas autoridades para a própria proteção. Contudo, eu permaneci, acompanhando a retirada de cada corpinho destruído; e quando o último foi resgatado, eu me aproximei, agarrando-me a um resquício de esperança.

Havia algo incomum – e, no entanto, familiar – naquele corpo. Somente ao reconhecer nele minha própria feição arruinada e inerte é que pude, enfim, compreender.

Nenhum milagre ocorreu naquele dia.

Este conto é o resultado de um tema de redação proposta na sala de aula de um curso preparatório. O texto deveria tratar de alguma emoção intensa e envolver, no mínimo, dois personagens; estas eram as únicas orientações. Obviamente, não pude evitar acrescentar uma pitada de ingrediente fantástico.

Para saber mais:

  1. Libere a criatividade com propostas de escrita: saiba mais sobre propostas de escritas neste artigo que publiquei aqui no blog.
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