Categoria: Crônicas (Página 1 de 3)

Mulherzinhas – por Aden Camargos

Leitora JovemSou filha de professora, que também era secretária na escola (estadual) em que eu estudava. Minhas tias, professoras – sempre serão apesar de não exercerem mais. Aqui em casa (ops, lá em casa, no passado) muitos livros, havia um armário com quinze volumes da Barsa. Lembro que necessitar dela pela primeira vez foi simplesmente científico. Senti-me aqueles pesquisadores incansáveis, visto em algum filme.

Mesmo antes de saber ler, sempre exerceram fascínio, aquelas páginas grudadinhas. Como pouco ou nenhum desenho poderia ser tão interessante?

Já na quinta série (aquela antiga) nada podia aprontar na escola. Todos os funcionários me conheciam: a menina da Ana. Mas o benefício… Ah, o benefício! Nas férias podia escolher quantos livros eu quisesse na biblioteca. Não bem assim, explico: todos os livros que eu quisesse para minha idade!

Passavam pelo crivo da bibliotecária ditadora. Logo avistado um indevido, descia para explicar: “sua filha não pode”. Sempre tentava o Charles Dickens. Só por ser o “não” tornava-o ainda mais curioso. Junto, na prateleira, havia uma coleção de capa dura, especificamente minhas mãos corriam para um exemplar chamado “Mulherzinhas”. Também era proibido.

Quando liberariam minha leitura?

Por pura indicação adquiri antipatia profunda pelo Padre Zezinho. E Poliana, menina, moça, mulher. Qualquer polianice me irritava. Tornei-me negativa por insistência de leia isso. Só para ser o contrário dessa fofice absurda.

É assim que criam uma menina a gostar de rock. Indicando livros religiosos e fofos.

Aconteceu um belo dia, no final do expediente escolar à tarde, escolhendo um ou outro livro, em análise absolutamente silenciosa, descobri-me sozinha na biblioteca. Olhei a porta. Fechada. Olhei as luzes, apagadas. A ditadora esqueceu meu silêncio! Aproveitei a claridade lá fora, antes, bem antes do meu apavorar! Fui logo na estante proibida. Enfim meu abraço… Mulherzinhas! Devorei em duas horas, talvez cem páginas.

A visão insignificante do entardecer trouxe a sensação da realidade:  vitória com pavor de dormir na biblioteca.

Abri os basculantes e comecei a gritar Seu Juca. Graças por conhecer todos os funcionários, amém, consegui ser libertada.

Escura a rua que descia para minha casa. Não, não havia celulares. Previsível surra me esperava. Não, não era absurdo umas chineladas. Naturalíssimo.

Entre os belos xingos, chinelos e tentativas de explicações, lá dentro cantava a música da vitória. We are the champions também. Sem eu sequer ainda conhecer.

Sim, eu transgredi.

E amava rock. Queria voltar e sentir aquele prazer. Misturado com medo e dor. Talvez já fosse amor.

* Mulherzinhas – Escrito por Louise May Alcott.

Sobre a autora

Aden CamargosAden Camargos é pessoa engolidora de choros, por isso sofre de derrames por extensos quase todas as noites. Os assuntos que ela escreve referem-se ao enorme mundo à volta de seu umbigo. Adora escrever e fazer andanças; sobe morros e picos.

Suspeita que a felicidade seja algo tão difícil de alcançar que deve estar no mais alto ponto do Himalaia. Por isso escala em MG e RJ; vai que existem felicidadezinhas nas montanhas menores? Não suspeita que seja escritora; é uma atrevida mesmo.

Para saber mais:

  1. Universos Paralelos: o relato fantástico de uma viagem ordinária.
  2. Dentro da armadura letra “B”: quanto encanto um desconhecido pode provocar em alguém com alma de poeta?
  3. Aden no Facebook: perfil da cronista na rede social.

Dentro da armadura letra “B” – por Aden Camargos

Então eu te vi. Como quem vê banalidades atuais. A gente corria por aí. Bicicletas observáveis. Lojas, supermercados, o dia a dia que ainda pode matar. Era uma tatuagem a caminhar. Flores surreais, plurais. Olhar para trás pode ser um ataque, pode começar uma guerra, houve notícias que viraram sal.

Na mesma cidade você carregava pesos fechados em caixa. Eu descia leve, faminta. Entre nós, pessoas com suas vidas misteriosas desciam, subiam e se procuravam.

Num instinto deixei um recado, talvez direito. Com restante poético embalado, enrolado, feito um futuro cigarro, com nome perfurado.Eu que nem fumo. Sem querer parecer forte saiu um pouco sagrado. Senti. Um exibicionismo da minha mão que reporta a teclas infinitas. Ah, se eu pudesse fazer você perder a linearidade!

Essa pose por fora. Essa coisa marrenta que desmancha no sol, ao calor jogado. Aposto que vai marcar a facadas por semanas, até se desmanchar no breu do quarto. A noite serve para desvanecer sonhos.

Pronunciei nome. Eu, já esquecida dessa matemática. Como nas brincadeiras dos meninos houve obrigatoriamente um codinome, um apelido. Nos gritos de passarelas, nos carros quando passam. Como chamar? Veio aflição. Poderia guardar as letras que lembraram guerra. As infinitas numerologias feitas por mim, quando veio possibilidade estacionada perto de casa.

Motivos estéreis moveram a hora do seu trabalho. Refeições de medo, vigília, exageros, total submissão.

Além disso, a textura dos cabelos que toquei. Posso descrever até a sensação que não tive, crio uma paisagem negra e brilhante. Farfalhante de quando fala. Um reflexo noturno me encantaria. De lua, de luz fraca, poste, faróis à quase manhã.

Pena, ficamos com a preservação do negro. Dos costumes habituados. Dos vícios incorporados. Das infelicidades não ditas nem esclarecidas. Roupas negras, coisas negras no rosto… Olhar diminuído. Sono. Apreensão. Nada que tenha sido eu a causa. Mal acabei de voltar de mim e vem você, “se” aparecendo assim, sem permissão, sem prévia, sem piedade. Minha porteira é de ventania, não tenho como travá-la. Coisa de interior. De estrada percorrida, poeira e gado no pasto. De repente desce raio.

Não se engane. Sinto muito que não seja preservada a beleza poética do desmatamento de roupas. Seu sorriso não me olha, é um fetiche de obrigação. Uma vontade de mudar que não chega a caminhar, um aborto até. Claro que vi, até sabia do fim, só não pude evitar.

Descarregue o que tinha. Toque lindamente. Já desci, mesmo querendo ficar e ver a tortura permanecer. Não era hora, máquina do tempo perdido. Chovia. Para evitar, morri. Não sei bem se eu chorava, afobava ou dormia. Foi quando cheguei de novo em mim. Foi bem aqui. Me esfolei na cerca, tinha luz ligada, serviu de nada. Nem placas, nem trovões ou diversas claridades. Aproveite suas razões. Eu, a encantada.

Sobre a autora

Aden CamargosAden Camargos é pessoa engolidora de choros, por isso sofre de derrames por extensos quase todas as noites. Os assuntos que ela escreve referem-se ao enorme mundo à volta de seu umbigo. Adora escrever e fazer andanças; sobe morros e picos.

Suspeita que a felicidade seja algo tão difícil de alcançar que deve estar no mais alto ponto do Himalaia. Por isso escala em MG e RJ; vai que existem felicidadezinhas nas montanhas menores? Não suspeita que seja escritora; é uma atrevida mesmo.

Para saber mais:

  1. Universos Paralelos: confira mais esta criativa crônica de Aden Camargos.
  2. Aden no Facebook: perfil da cronista na rede social.

Quatro Fantasmas

4 SombrasDirijo. Ao lado, pela janela entreaberta, o mundo, nítido. À frente, trânsito. Tarde da noite, e trânsito. As horas do dia pesam; corpo e mente clamando por piedade. Ignoro-os. Tento ficar atento ao meu redor, preciso encontrar aquele algo, o click, o insight. Nada.

O estômago urra – quando foi a última vez que comi? Os faróis são apagados pelo esplendor da praça iluminada. Luzes de Natal… Natal! Jesus, família, significados deturpados, o verdadeiro espírito da festa. Nada.

Bá, não me vem nada que já não tenham alardeado por aí; exceto, talvez, que a figura do velhinho bonachão de roupinha e sacolão vermelhos é uma criação da Coca Cola – disso eu não sabia. Carros e pedestres, pedestres e carros. E a Musa? Essa está de férias já há algum tempo, talvez se preparando para celebrar o Natal. Que tal música? Essa sempre inspira algo. Ah, rádio quebrado, esqueci. Celular. Podcast de literatura. Quem sabe?

Paro de prestar atenção em tudo. Ao som do burburinho, sou visitado por fantasmas, mortos e vivos. Eis Nelson Rodrigues, repórter, cronista e conselheiro de relacionamentos, tudo no mesmo dia; ao seu lado, Bráulio Tavares, com caderno e caneta em mãos, escrevendo mais um de seus inúmeros textos para sua coluna diária. Diária! Os dois caminham com sorriso zombeteiro pela calçada ao meu lado; vão na direção de um clássico Plymouth Fury dirigido por Stephen King, que os aguarda com um monte de folhas, ansioso para lhes mostrar mais duas mil palavras escritas hoje.

Antes que o carro dispare por uma rua livre do trânsito – nojentos! – e suas risadas se dissipem ao longe, os ouço comentar sobre uma visita a Rioky Inoue: o recordista mundial lhes contará de novo como passou, em algum momento da década de 90, a escrever três livros por dia. Obrigo-me a pensar em Joyce e na anedota onde ele revela a um amigo – ou a esposa, depende da versão –, ter tido um dia produtivo após escrever três frases (ou quatro, vai saber).

Mais adiante, estrada livre, disparo no limite da via, pensando. Penso no livro de contos que se arrasta há dois anos, nos cursos que pretendo fazer e que, espero, tornem-me um escritor melhor. Penso que talvez esteja perdendo tempo ou enganando-me sobre ter algum talento com a palavra.

Penso, penso, penso. Já me disseram que penso demais, que eu deveria sair da minha cabeça com mais frequência e ver o mundo lá fora. E eles têm razão, mas hoje o mundo não me oferece nada além de enfado e isso já tenho de sobra, obrigado. Onde está aquele universo em movimento e sua promessa de inspiração, de histórias a contar? Dormindo? Volto pra dentro, mesmo sabendo que ali só há angústia, dúvida, birra até – como é possível querer mesmo viver de tanta frustração? Bá, melhor é desligar.

Casa. Janta, banho, sofá, sono. Dentes escovados, cama feita, cabeça no travesseiro. Luzes apagadas. Click. Luzes acesas. Meio inconformado, pego o caderno e começo a rabiscar este texto. Quem sabe o amanhã não vem com o insight, a revelação – quiçá a Musa me ligue ou mande um cartão postal? Mas, caso isso não aconteça… Rabisco, revejo, penso, repenso. Melhor garantir algo para o encontro de amanhã. Suspiro alto, chateado e irritado por cair no clichê de mais uma crônica sobre a falta de assunto.

Este texto foi escrito durante a oficina Caro Leitor: A Cronista e as Palavras, ministrada pela escritora Ana Elisa Ribeiro em Belo Horizonte em novembro de 2014.

Universos Paralelos – por Aden Camargos

Ônibus na EstradaFoi um dia de atravessar portais. Para a estranheza de quem recebeu a chave oca do teletransporte, é de se esperar a surpresa do impossível. Ao chegar ao ponto de ônibus – local chamado de “na ponte”, que não é ponte – avistei um rico. Quiçá milionário. O que ele fazia na ponte? Tem helicóptero! Por aí, já pressenti: não existia aquele momento. Era ilusão o portal, a abertura, a chave. Minha vida.

Meus poderes xamânicos estavam imundos de pântanos interiores e bem soube: vai fechar! Não se manteria aberto. Mas eis que o desacelerador de partículas comprado usado do CERS chegou imponente.

E como tudo em Itaúna, seguimos sempre parando. Ah, meu Deus! O rico entrou! Fico apreensiva nessas viagens. Suspeito que há uma máfia de entrega de pães de queijo sem notas fiscais em Mateus Leme. Não há paciência nem playlist que suporte tantas desacelerações, entradas e saídas. Juro que descem as mesmas pessoas que sobem. Acabaram de descer e já vem de novo? Claro, são os pães de queijo, arrependeram-se e querem mais!

Não era pela quitanda, mas um homem entrou gritando. Sua mulher também. Foram se desnudando da vida de casa e do quarto. Ele era um chato, devia dinheiro até para as palavras feias. Ela estava “cheia de pedra”, uma louca. Sim, agora entendi o que era louca de pedra. Não era amor. Não era ódio… Ele pagou ambas as passagens. Para a cobradora pagou em dinheiro. Mas sobre a dívida com palavras, insistiu em nos demonstrar planilhas com colunas de mágoas. Chamou-a pelo nome: Lixo.

Coloquei o All Star de Cássia nos ouvidos. Sim, algum silêncio musical para que eu não me envolvesse. Curiosidade entre azul e preto? Tantos segredos voando de sacolinhas… Desliguei.

Barreira da polícia sempre foi o lugar de passar despistado, colocar os cintos. Mas foi onde ele tirou em sonoro “pare”! “Vou deixar essa louca aí”. Pronto. Chave oca errada! Vamos atrasar no B.O. Todos testemunhas! Claro, era o portal se tremendo todo, mal se equilibrando nas energias rosa do amor aos livros. Sei, sei, não vai aguentar.

A doida já não manifestava sobre dívidas e chatices. Sentiu medo, fome, solidão. Seus olhos gritaram e choraram pedras. Senti doer. Eram cálculos auriculares. Expeli-los dói muito. Soluçava. Ele mandou seguir. Sentou três banco mais perto. Se não tivesse exibido tanta contabilidade, talvez a abraçasse. Apenas abriu seu baú de moedas vis pela janela, se endividando até o pescoço, sufocado de vento.

Ufa! A chave oca na mão, numerada 128634 foi guardada. Funcionou, já que de Contagem em diante já era outra dimensão.

Foi só turbulência… Coisas de caminhos tortos. Desci em BH. As interceptações na Afonso Pena ainda me fizeram procurar pela magia. “Per benedictionem clavis beneficus”! Me deixem passar! Ave! Aula de novos poderes, novos feitiços, novas poções. De beber às talagadas. Aconteceu! Nesta taça… Esta que desenho aqui, agora, em rabiscos fonéticos.

Sobre a autora

Aden CamargosAden Camargos é pessoa engolidora de choros, por isso sofre de derrames por extensos quase todas as noites. Os assuntos que ela escreve referem-se ao enorme mundo à volta de seu umbigo. Adora escrever e fazer andanças; sobe morros e picos.

Suspeita que a felicidade seja algo tão difícil de alcançar que deve estar no mais alto ponto do Himalaia. Por isso escala em MG e RJ; vai que existem felicidadezinhas nas montanhas menores? Não suspeita que seja escritora; é uma atrevida mesmo.

Para saber mais:

  1. Aden no Facebook: perfil da cronista na rede social.

Lero-lero: McDia infeliz

Lero-lero

Lero-lero é uma coluna regular cedida ao meu parceiro de letras Diogo Ruan Orta. Gente finíssima e com carta branca para escrever o que desejar, ele compartilhará por aqui crônicas, desabafos, contos e o que mais houver dentro daquele caos enevoado que ele chama de mente. Espero que o leitor se divirta tanto quanto eu lendo e desvendando o quanto dos escritos do Diogo é fato e o quanto é ficção.

O andrógeno abriu a porta e mal me encarou. Tinha no rosto a perfeita expressão do tédio. “Bem-vindo, senhor”, disse num muxoxo. Senti que não se importava se eu o havia escutado ou não. Largado perto de uma caixa registradora, outro moleque, metido no mesmo pavoroso uniforme cinza. Da meia dúzia de condenados do lugar, este se destacava pelos cabelos rentes, estilo milico, e pelos olhos roxos que me intimavam a comprar algo.

Seguiu-se o roteiro à risca: “boa tarde, qual o seu pedido?”. Uma promoção, por favor. “Qual bebida?”. Suco. De laranja. “Aumenta a batata por um real?” Não, não. “Acompanha sundae e leva um copo da Copa?”. Opa! Quem mudou o roteiro? Não era assim que eu me lembrava. Copo da Copa? Sério? Esse povo já foi mais bem treinado. Não vai ter Copa nem vai ter copo.

Forma de pagamento, preço, passa no crédito, a senha, “aguarda ao lado, por gentileza.”. Os olhos fundos dizem mais: “fique onde quiser, nem ligo. Odeio minha vida.”. Do balcão entre mundos fitei os bonecos cinzentos agitando-se pra lá e pra cá. Espinhas pipocavam das peles oleosas, roupas de sobra sobre braços e pernas esqueléticas, corpos amorfos. Desprovidos de vontade e vida, como autômatos frios. Nunca sorriam, exceto nas fotos de funcionários do mês – três. Não deveria haver apenas um?

Lanchonete Fast FoodDe pedido na mão, entoquei-me perto da vidraça. No parquinho colorido do outro lado uma mãe chamava pelas crianças, mas escadas, tubos e escorregas são sempre mais atraentes do que um lanchinho. Música. De alto-falantes ecoavam os sons da rádio que embala as suas refeições. Tocava quando entrei? Entregues ao ritmo, meus pés sapateavam sobre perguntas (e problemas) irrelevantes.

Eu mastigava e corria os olhos pelas paredes repletas da caixinha cartunesca. Travestida de herói, tinha o sorrisão e os olhões mais vivos que os dos escravos sem alma além do balcão. E então as lembranças me tomaram de assalto: outra época, mesmo lugar, uniformes diferentes, sentimentos semelhantes. De relance, refletido na vidraça, notei o reflexo do passado com sua face sardenta, pele engordurada, cabelos desgrenhados, e dentes aprisionados. Olhos fundos.

Transportado de volta ao agora por um calafrio e uma bufada, espantei-me com a multidão que enchia o lugar. De onde vieram? Quando? Droga, molho na minha calça. Limpo enquanto brinco de distinguir e rotular: mochila nas costas? Universitários. Terno e gravata? Empresário. Shortinho, piercing, camisa de marca? Patricinhas, boyzinhos. Loira superficial. Mulata sensual. Ruiva misteriosa. Pai divorciado passeando com a filha. Aquele ali já deve ser avô.

O andrógeno depressivo recebia e despedia, sem nunca olhar nos olhos, um fone enfiado em uma das orelhas. E o ciclo se repetia. Balcão, pedido, preço, pagamento, lanche, mesa, rua. Ah, a rotina, essa merda. Todos tão metidos em suas mesquinharias, sempre. Eu também, mas não naquele dia. Por quê? O que me tinha arrancado do marasmo de todo dia? Acho que eu sabia bem o quê… Então o toque do celular me despertou para a realidade. De volta ao trabalho. Restos no lixo, bandeja devolvida e fui pela porta afora. Antes de sair, ouvi o sopro distraído: “volte sempre”.

Não é pelos R$ 20 bilhões – por Lorena Otero

Na última quinta-feira, saí de casa animada pelo expediente curto. Essas horas a menos no trabalho eram minha maior relação com a estreia do Brasil na Copa do Mundo. Escolhi um vestido verde apagadinho, perfeito para não levantar suspeitas. Pra quem #naovaitercopa, eu era mais uma que não dava a mínima para o mundial. Para quem #vaitercopasim, eu me misturava perfeitamente em uma torcida de verdes, amarelos e azuis berrantes. A verdade é que eu já me sentia casada da Copa e não queria me dar o trabalho de tomar um partido.

Cena de Last Week Tonight with John Oliver.

Em vídeo, apresentador fala sobre os abusos da FIFA no Brasil.

Os absurdos que a FIFA fez no Brasil, com a bênção do governo federal, são motivos reais de indignação. Não tínhamos condição financeira de hospedar um evento dessa magnitude, muito menos moral para impor respeito. Os protestos que começaram com a defesa de um ideal e explodiram em um manifesto de insatisfação à política, se esfriaram porque eram poucos aqueles que sabiam o que estavam fazendo. A grande maioria foi levada pelo clima, foi palha envolvida pela chama.

Hoje, os protestos são povoados por mascarados violentos que se distanciam de seu significado. Onde está a lógica da minha crítica se, para condenar a violação ao meu país, eu destruo os símbolos da minha cidade? No meio destes, alguns românticos vazios nem sabem direito o que defendem com argumentos genéricos, se colocando em risco e alimentando um movimento descaracterizado. Os estudantes dos diretórios acadêmicos, militantes e cidadãos inteligentes que, no início de tudo, comandaram essa rebelião contra a omissão dos governantes, estão desfocados por pessoas que não os representam.

A cereja no topo do bolo é a elite brasileira. No ano passado, mauricinhos e patricinhas de toda parte se deixaram levar pela beleza das avenidas lotadas e pelo orgulho de ser brasileiro. Este ano, eles só querem chegar cedo em casa e esperam que não nenhum black block ouse a entrar em seu caminho. Na abertura da Copa, foram eles que ofenderam a presidente Dilma Roussef, provando que alta escolaridade não tem nada a ver com educação.

Essa Copa do Brasil nem é feito da Dilma, meu povo. Quando fomos escolhidos para sediar o mundial, foi o Lula com seus quatro dedinhos que apertou a mão do Joseph Blatter, todo sorridente. Isso aconteceu em setembro de 2007 e, se não estou enganada, tinha quase tanta gente na rua comemorando o resultado anunciado pela FIFA quanto tinham nas manifestações de 2013.

O ímpeto que levou toda essa classe a média desabafar no estádio palavrões repreendidos em suas residências é feito do mesmo material que move os mascarados nos atos de vandalismo: anonimato. Dentro de um grupo, eu não tenho personalidade, não tenho voz e faço parte de uma massa sem rosto. O meu grito no estádio se soma ao coro. Minha pedra na vidraça se soma ao carro da imprensa incendiado. Ninguém é culpado quando a responsabilidade é de todos.

Somos um?

No anonimato todos estão certos, mesmo quando estão errados. – Foto de Rodrigo Dias

Por tudo isso, eu estava com preguiça da Copa. Já tinha saturado o tema e a ideia de conviver com o campeonato por mais um mês me desanimava profundamente. No entanto, foi só quando meu namorado me obrigou a assistir o jogo que eu percebi o que eu estava ignorando na minha pretensiosa análise da situação. A Copa do mundo não é só determinação nonsense, não é só corrupção, não é só declaração babaca de ex-jogador despreparado. É a maior festa do futebol, uma das poucas coisas capazes de nos unir como nação. Cada brasileiro, em algum momento de sua história, já utilizou o número de Copas que assistiu como unidade de medida da própria vida. Isso é grandioso demais para ser desvalorizado.

Nesta terça, quando o Brasil joga de novo, o verde da minha roupa vai ficar mais corajoso. Vou para o trabalho com a camisa da CBF de apenas quatro estrelas que ganhei no ano do Penta. Ela é velha, um pouco encardida, e tem quase quatro vezes o meu tamanho. Mesmo assim, vou andar pela rua orgulhosa, e esse sentimento não tem nada a ver com o governo que abriu as pernas para a FIFA ou os amigos militantes que vão me julgar pelo “patriotismo alienado”.

The New York Times filma manifestantes comemorando gol do Brasil.

The New York Times filmou manifestantes comemorando o primeiro gol do Brasil.

Essa camisa é o meu pai vestindo a filha de 12 anos com a roupa do próprio corpo porque não queria ninguém da família descaracterizado durante o jogo. É a minha sogra que, mesmo durante uma fase de luto e tristeza, vibrou e gritou de alegria quando o Oscar fez o terceiro gol. É minha mãe, eterna desapegada de todos os bens materiais, guardar minha touca listrada de verde amarelo porque sabe que me dá sorte. É a vitória de ter mantido a mesma turma de amigos para torcer por mais uma Copa. Não é fechar os olhos para a situação política do meu país. É me permitir viver uma alegria que faz parte da cultura brasileira.

Sobre a autora

Lorena Otero é jornalista e trabalha em uma agência de comunicação. Fora os textos do trabalho, lê o Escriba, revistas e livros. Fica feliz na época de horário político e detesta verduras e insetos.

Já escreveu um livro infantil de quatro páginas quando tinha sete anos e acreditou quando a professora disse que ela tinha jeito com as palavras. Deviam prestar mais atenção nos profissionais de educação deste país.

Para saber mais:

  1. O efeito nhé: onde a cronista convidada Lorena Otero comenta sobre o mascote da Copa.
  2. Pautas Caídas: blog ao qual a cronista pretende se dedicar mais no futuro.

Lero-lero: “A Morte do Demônio” nem é tão apavorante…

Lero-lero

Lero-lero é uma coluna regular cedida ao meu parceiro de letras Diogo Ruan Orta. Gente finíssima e com carta branca para escrever o que desejar, ele compartilhará por aqui crônicas, desabafos, contos e o que mais houver dentro daquele caos enevoado que ele chama de mente. Espero que o leitor se divirta tanto quanto eu lendo e desvendando o quanto dos escritos do Diogo é fato e o quanto é ficção.

Atenção: este artigo contém revelações do enredo (spoilers) de filmes da franquia A Morte do Demônio.

Encontrei um tempinho para assistir a A Morte do Demônio, refilmagem do clássico cult da década de 80. Nunca ouviu falar? Ou você é muito mirim ou muito alienígena ou apenas não é tão chegado assim em filmes – de qualquer forma, o texto de hoje não vai te interessar, então é melhor ir fazer outra coisa; vai lá, de boa, sem estresse.

Ash no original "A Morte do Demônio"

“Como assim eu não estou no remake?”

Ainda aqui? Você curte a canastrice de Bruce Campbell? E os trabalhos de Sam Raimi? Você também acha os filmes originais do Aranha melhores do que essa nova palhaçada caça-níqueis da Sony? Ok, fugi do assunto. De qualquer modo, é provável que, como eu, você não tenha gostado muito deste remake. Em boa medida, o filme cumpre o que promete: terror e violência a rodo. Mas isso não bastou para este fã aqui.

O começo tem aquela pegada de mistério e terror que nos faz esperar uma experiência foda que, infelizmente, nunca ocorre. É um filme assustador? Pode crer. Só que não é aquele medo que sentimos ao ver os demônios zoando com Ash e sua turma no primeiro filme, antes da franquia degringolar para o gênero terrir.

Este A Morte do Demônio está mais para Jogos Mortais do que para Arrasta-me para o Inferno, do próprio Raimi – um filme muito superior, diga-se. Não há aqui o equilíbrio entre o gore e a fragilidade (e incapacidade) humana diante do sobrenatural que eu sentia no original. Pelo menos não excluíram o livro maldito, a perversão, as possessões, a mão infectada, a serra elétrica, o babaca que brinca com o que não deve, o demônio indefinido caçando pela floresta, o herói cansado de fugir juntando suas ferramentas e partindo pra guerra.

Carro de Ash aparece em cena.

Não, amiguinhos, este não é o carro que vocês estão pensando… não exatamente.

Dizem que o filme é uma continuação só porque, logo no começo, há uma cena que mostra o carro usado por Ash e seus amigos. Papo furado. A razão é simples: o segundo filme da série acaba com um vórtice temporal sugando carro, cabana, livro e Ash de volta no tempo, lembra? Desconsiderar as continuações clássicas é um sacrilégio.

Prefiro ver este A Morte do Demônio como um filme diferente, um remake meia boca. Só assim para eu engolir os exorcismos (no original, uma vez possuído, já era, e aí estava o verdadeiro terror) e a cura mágica dos ferimentos de Mia depois da possessão (a língua dela não deveria estar bifurcada?); ah, e o nome do livro (sei que no primeiro filme ele também é chamado Naturom Demonto, mas sempre achei Necronomicon Ex Mortis melhor, diabos!).

Livro Naturom Demonto

Sem dúvida é mais prático escrever um aviso no livro maldito do que apenas enterrá-lo bem fundo.

E ainda tem uma enfermeira que acha normal alguém em choque vomitar uma quantidade absurda de sangue; e o tal David, que continua de pé depois de ter peito e olhos perfurados por uma seringa, mão rasgada (e cabeça amassada três vezes) por aquele cacete de pé-de-cabra, e braços perfurados por pregos – ele é parente do Wolverine?!

Pra que aquela balela de coletar cinco almas para trazer à vida o demônio malvadão? Por que esse tal demônio é um cosplay da Samara quando a própria Mia possuída é mais assustadora? Por que o demônio ressurreto é tão burro e incompetente? Por que a garotinha possuída e o livro estavam na cabana logo no inicio do filme, se o lugar pertencia aos pais de Mia? E por que, POR QUE os caipiras não enterraram a porra do livro?

Agora o que matou o filme pra mim foi o final tosco, covarde e desleal à franquia, que nunca acaba com o protagonista vitorioso. Talvez se tivessem incluído a tal cena onde uma Mia ainda possuída é abordada na estrada por um caminhoneiro de rosto familiar eu tivesse ficado mais satisfeito.

Mia dando cabo do demônio com estilo.

Olha aí o demônio malvadão sendo morto por uma motosserra!

Sobre o autor

Diogo Ruan OrtaDiogo Ruan Orta é um leitor fanático. Detesta redes sociais e vive em rigorosa dieta de informação desde que concluiu que há pouquíssima vida inteligente no mundo virtual. Antissocial, acredita ter meia dúzia de amigos verdadeiros – destes, dois vivem sob o mesmo teto que ele. Não tem pretensões de se tornar escritor (no Brasil? Que piada!), mas sente que escrever é seu carma e uma forma saudável de dar vazão aos seus instintos psicopatas.

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