Categoria: Crônicas (Página 2 de 3)

Lero-lero: Só mais uma noite perdida

Lero-lero

Lero-lero é uma coluna regular cedida ao meu parceiro de letras Diogo Ruan Orta. Gente finíssima e com carta branca para escrever o que desejar, ele compartilhará por aqui crônicas, desabafos, contos e o que mais houver dentro daquele caos enevoado que ele chama de mente. Espero que o leitor se divirta tanto quanto eu lendo e desvendando o quanto dos escritos do Diogo é fato e o quanto é ficção.

No balcão do bar, Muhammad Ali me mediu com olhos duros. Um instante depois, ele bufou, cheio de marra. Devia achar que o franzino aqui não era ameaça. Nem liguei. Só queria saber das curvas da candidata a Globeleza ao lado dele. Era uma noite fria, mas a morena estava à vontade no vestido – ou seria uma blusa? Até o Papa babaria diante da mulher: cachos escuros caídos sobre ombros nus, pelinhos amarelos pelas coxas adentro, perfume alucinante fluindo da pele lustrosa.

Um toró de braço espremeu a cinturinha dela e dedos tamborilaram no alto das nádegas. O brutamonte se esbaldava. A inveja doeu no estomago (ou seria fome?). Daí eu escutei aquelas vozes e quase explodi de ri. É, meu povo, que outros estragos essas bombas andaram fazendo? Que Ali soasse como uma soprano não incomodava a Globeleza – na verdade, de tão rouca, ela agora mais lembrava uma panicat.

Eu quis me sentar longe do casal de matracas, mas o lugar ainda estava lotado. Já que ia esperar mais, por que não molhar a garganta? Do lado de lá do balcão, uma branquela beiçuda lavava algo na pia e me ignorava. Dirigi o apelo sedento a um rapaz de avental que vi correndo até o freezer. Já vou, me respondeu com a cabeça. Equilibrando seis latas de Skol, ele voltou a toda pela portinhola perto do caixa e apanhou uma cadernetinha preta. Antes de sumir lá nos fundos do bar, ainda assentiu para outras três mesas.

Olho EsmeraldaTremenda putaria colocar três pessoas para atender, o quê, três dúzias de pessoas? Pior, em uma sexta-feira! Ou seriam apenas duas, já que o caixa parecia abandonado? Que sacanagem despencar lá da capital pra implorar bebida no tal novo point do qual todo mundo tem falado. Cidade pequena tem dessas merdas. Ao invés de aproveitar o sucesso pra investir na melhoria do lugar, o que o dono faz? O muquirana corta custos, aumenta preços. Quem não gostar que fique em casa ou vá à quermesse da igreja.

Foda-se. Passo bem sem esse lugar, obrigado. Talvez ainda dê pra encontrar a turma e ver as pervas dançando alucinadas. Vai querer o quê, amigo?, era o equilibrista frenético ao resgate, mais veloz do que o Papa-Léguas. Opa-opa, gorjeta indo embora. Bip-bip. Vai querer o quê, amigo? Eu já ia dispensá-lo com uma torra, mas tive uma visão que me fez desistir. Uma Coca-Cola; gelo e limão, pedi – a garganta queria álcool, mas eu tinha uma longa estrada de volta pra pegar. Indiquei um lugar perto da fachada e, sem dar mais atenção ao rapaz, fui atraído por aquelas joias.

O pedido não demorou – ou talvez tenha demorado, não sei bem. Mergulhado no mar verde daqueles olhos eu tinha perdido toda a noção do tempo. A garota que eu contemplava perdia feio para a Globeleza madura e sinuosa de Ali; tinha cabelos chamativos, mas tão dourados e lisos que não poderiam ser naturais; a maquiagem de gueixa era uma máscara. Ela não era feia, só estava pouco abaixo dos meus padrões. Ainda assim, não resisti às esmeraldas que faiscavam em seu rosto.

Meu fascínio incontido foi notado com satisfação. Sei reconhecer as sutilezas femininas nos gestos, olhares, respiração; tive mulheres o bastante para isso. Ela gostou de algo em mim, o que me surpreendeu. Uma maré péssima tem me carregado nos últimos tempos; eu chego a duvidar de que terei outra mulher tão cedo. Sim, ainda, pois naquela noite hesitei. Por que não tomei uma atitude? Por que me contentei em admirar aqueles olhos à distância até que eles saíssem da minha vida da mesma forma que entraram? Não faço ideia.

Enquanto escrevo sobre aquela noite perdida – apenas mais uma entre tantas em minha vida – tento encontrar respostas convincentes. Mas de duas coisas tenho certeza: lamento minha hesitação (desdém? covardia?) e torço por outra chance com a garota de olhos sobrenaturais. Talvez assim eles parem de me atormentar todas as noites em meus sonhos.

Sobre o autor

Diogo Ruan OrtaDiogo Ruan Orta é um leitor fanático. Detesta redes sociais e vive em rigorosa dieta de informação desde que concluiu que há pouquíssima vida inteligente no mundo virtual. Antissocial, acredita ter meia dúzia de amigos verdadeiros – destes, dois vivem sob o mesmo teto que ele. Não tem pretensões de se tornar escritor (no Brasil? Que piada!), mas sente que escrever é seu carma e uma forma saudável de dar vazão aos seus instintos psicopatas.

Lero-lero: Uma banana pra sociedade!

Lero-lero

Lero-lero é uma coluna regular cedida ao meu parceiro de letras Diogo Ruan Orta. Gente finíssima e com carta branca para escrever o que desejar, ele compartilhará por aqui crônicas, desabafos, contos e o que mais houver dentro daquele caos enevoado que ele chama de mente. Espero que o leitor se divirta tanto quanto eu lendo e desvendando o quanto dos escritos do Diogo é fato e o quanto é ficção.

O mundo me enoja. Ou será o ser humano? Sim, faz mais sentido: a humanidade me enoja. O Todo-Poderoso (Deus, não Morgan Freeman) cantou essa pedra milênios atrás. Imagino se Ele não estará cogitando um novo dilúvio para breve – sujeira para lavar tem de sobra. Aproveite a estação de chuvas e o descaso de nossos governantes eleitos, ó Divino, e afunde a todos nós nas águas lamacentas de nossas vergonhas.

O racismo é a bola da vez. TV, rádio, sites, redes sociais, todos alardeiam o caso: Villarreal x Barcelona, segundo tempo; o lateral-direito Daniel Alves interrompe a cobrança de escanteio para comer uma banana atirada em campo. “Banana evita câimbra”. Espirituoso. Banido pelo resto da vida, o torcedor babaca assistirá aos jogos do Villarreal pela TV. Que terrível punição.

A comoção é geral: indignação, revolta, solidariedade. É hora de retomar o debate sobre as diferenças raciais, enfrentar o preconceito, gritar, ir para a rua. Parece pouco, não? Isso já foi feito antes, pouca coisa mudou. Talvez o melhor seja bradar em 140 caracteres, publicar selfies nos paraísos de felicidade e engajamento artificiais. E por que não ir além? Esmagar o racismo com aquela hashtag esperta – #somosTodosMacacos soa genial, não soa? –, com o apoio de celebridades que convivem desde sempre com o preconceito.

Banana contra o Preconceito.

Dando uma banana pro preconceito.

Que o apresentador solidário tire algum lucro disso não importa. O que vale é a mensagem, é consertar o que é errado, é o apoio e o engajamento para destruir esse mal do coração dos homens. Sabe de nada, inocente. A questão é fazer um bom negócio, é vender uma imagem. Um pouco de fumaça, espelhos (e aconselhamento publicitário), e presto!, o craque que nunca se admitiu negro tem um surto de cidadania e corre para o front em defesa do companheiro.

Se a jogada é boa, por que há tão poucas fotos (ainda não vi nenhuma, pra ser honesto) de negros posando com bananas? Será que não entenderam essa brilhante ação de marketing? Seria uma pena, afinal, tanta gente do bem se ergueu em defesa de seus direitos. Ainda assim, o valor da iniciativa é bem claro, não é? Quando as chamas do incêndio cívico se apagarem, seria interessante promover um debate igualmente valioso. Até sugiro uma hashtag para a campanha: #somosTodosOportunistas. Não é genial?

Sobre o autor

Diogo Ruan OrtaDiogo Ruan Orta é um leitor fanático. Detesta redes sociais e vive em rigorosa dieta de informação desde que concluiu que há pouquíssima vida inteligente no mundo virtual. Antissocial, acredita ter meia dúzia de amigos verdadeiros – destes, dois vivem sob o mesmo teto que ele. Não tem pretensões de se tornar escritor (no Brasil? Que piada!), mas sente que escrever é seu carma e uma forma saudável de dar vazão aos seus instintos psicopatas.

Sorriso

Parado diante do portão, eu a vejo do outro lado da rua. Como um observador empenhado em decifrar uma obra de arte, permito-me contemplá-la num misto de fascínio e incerteza.

Então tudo ao seu redor assume aspectos de fantasia, a natureza conspirando para colorir diante de mim um quadro de pura beleza: sob um mar celestial, numa tarde de verão, uma musa em bronze banhada por águas cristalinas que lhe refrescam o corpo e a alma.

Como uma criança a divertir-se, ela sorri; não há sinal das preocupações que até a pouco a consumiam. Não posso evitar o fluxo de sensações que me acomete e agita os pensamentos. Ali está a mulher por quem me apaixonei, aquela que usufrui tudo o que a vida tem a oferecer, capaz de enxergar as mais terríveis situações de modo otimista, de transmutar lágrimas em sorrisos. Penso que não por menos todos a amam.

Em seguida, repito internamente, pela enésima vez, que ninguém jamais a amará tanto quanto eu. Exagero? Recuso-me a crer, eu que a conheço e aceito em todas as suas perfeições e imperfeições, que me disponho a transpor qualquer obstáculo só pela satisfação mesquinha de apreciar aquele sorriso, que a todos encanta, que a tudo ilumina, que à alma alenta.

Amor é isso, imagino; é querer bem, e cuidar, compartilhar instantes, rir e chorar; é tudo isso e mais, muito mais. É saber-se capaz de subir ao mais alto pico apenas para lançar-se das alturas às profundezas, gritando o nome da pessoa amada a plenos pulmões para que ecoe por toda a eternidade. Amar não é viver por, mas é viver com. Estremeço. A musa se volta para mim, lançando gélidas gotas d’água que me retiram de meu transe.

Ela galhofa e eu a amo ainda mais. Então, ao vê-la ali, radiante sob o sol, as roupas e os cabelos ensopados, estremeço novamente, agora abalado pela consciência da imensidão do sentimento que trago no peito. Que seria de mim sem ela, atrevo-me a cogitar. Sucumbiria, sem dúvida; não ante o peso da paixão perdida, mas do amor natural, simples e puro.

As palavras de Vinicius de Moraes em seu Soneto de Fidelidade, que até então me eram totalmente desconhecidas, ressoam em mim: “que não seja imortal, posto que é chama; mas que seja infinito enquanto dure”. A definição mais perfeita do amor, disse-me ela certa vez. Não sei se sou capaz de traduzi-lo tão eloquentemente.

Ora, que me perdoem, mas não creio que ninguém seja capaz! Amor não se define, amor se sente; ele não é lógico, não pode ser capturado em palavras, imagens ou sons. E com todo o respeito a Vinicius de Moraes, mas quero crer que o amor que carrego em mim é sim imortal e durará uma infinidade.

Mesmo que minha racionalidade tola me tenha tentado ludibriar, senti isso no primeiro momento em que a beijei; e em todas as vezes em que a vi sorrir, como agora. Bem ali, do outro lado da rua, eu a vejo resplandecer. Os olhos a brilhar como estrelas vespertinas; mareados pelas águas cristalinas, parecem verter lágrimas de pura felicidade.

Eu me deixo envolver e retribuo com um sorriso. Um sorriso bobo e sem graça, mas verdadeiro, sincero. Sorrio por nada, apenas pela alegria de estar ali, ao lado daquela que me ama… e que sabe ser igualmente amada.

Uma homenagem às mulheres

Ontem foi o Dia Internacional da Mulher. Como sempre ocorre em datas especiais, inúmeros sites de revistas, jornais e blogs pessoais preparam homenagens.

Falou-se da trajetória de lutas e conquistas, do papel da mulher no nosso século, dos desafios para o futuro, e sobre a mulher ideal.

Eu quis fazer algo diferente, prestigiando o vasto e enigmático universo feminino ao falar de pessoas mais próximas de mim. Assim, eis minha singela (e tardia) homenagem às mulheres da minha vida.

Mulheres Reais

Não falarei sobre a mulher ideal. Não existe mulher ideal. Ideal é o que se forma na ideia, no imaginário; é a manifestação imaterial de aspirações em aspectos diversos, perfeitos, oníricos, que jamais encontrarão correspondência exata na realidade. Por isso não há que se falar dessa figura mítica.

Fazê-lo é exultar a própria mesquinhez, pois o que seria a mulher ideal senão um reflexo do que consideraríamos, como homens, o melhor para saciar o ego? E quantos podem afirmar com plena certeza o que é melhor para si?

Brada-se sobre a busca da mulher perfeita, alardeia-se a glória de tê-la encontrado, mas são poucos os que se dão conta de que o ideal não pode existir em qualquer lugar que não dentro daquela porção individualista tão comum e ignorada de cada um. Não falarei sobre a mulher ideal, pois as mulheres de minha vida estão longe disso, elas são bem reais.

Sou grato a Deus por existirem e estarem sempre ao meu lado, independentemente do meu estado de espírito, das minhas atribulações, carências e esquisitices. Apesar de mim, tão desmerecedor de suas atenções, elas estão ali, a irradiar sua luz em minha vida, a preenchê-la com suas bênçãos e maldições – ah, e quanto poder elas detém!

As mulheres de minha vida não são idealizadas, elas são o que são. Compartilham alegrias e tristezas, altos e baixos; revelam-se sem receios, sem ressalvas, em cada palavra e atitude, sorriso e lágrima, carinho e tapa, no modo de viver cada momento intensamente; são gentis e ásperas, delicadas e guerreiras, carinhosas e insensíveis, firmes e carentes. Com todas as suas qualidades e defeitos, são musas, divas, referências, estrelas-guia, Norte de meus caminhos.

A mulher ideal não te inspira a ser alguém melhor, mas a mulher real sim. Não para satisfazê-la, não para sentir-se um homem a sua altura, mas pelo impulso que vem como uma maneira de expressar e espalhar por todo o mundo a beleza e o amor plenos que sua mera existência proporciona. Tão iluminadas são que suas vidas por si transformam o mundo, naturalmente, e assim seria mesmo se eu jamais fizesse parte delas.

Mulheres reais, virtuosas e pecadoras, seres divinos perfeitos em corpos mortais imperfeitos, dedicadas aos que amam mesmo que nem todos lhes retribuam o sentimento como deveriam. Questiono-me o que fiz para merecer o milagre de conviver com tais maravilhas, mas não encontro resposta.

Percebo o tamanho de minha dívida com Deus e, numa prece silenciosa, comprometo-me a ser a melhor pessoa que puder, não apenas por Seus desígnios, nem só para tornar o mundo um lugar melhor, mas em honra e agradecimento às mulheres da minha vida.

Vendo a vida passar – Crônica

De pé sob o sol escaldante, retiro o celular do bolso e confiro o relógio. Lá se vão mais quinze minutos da minha vida. Impaciente, busco a confirmação dos dígitos no visor: o motorista está atrasado, de novo. Praguejo em voz alta sem temer que me ouçam, afinal, não há vivalma no ponto.

De nada adiantou desembestar morro abaixo, resfolegando e pingando suor. Estranho como as coisas, às vezes, acontecem: tivesse seguido sem afobação, eu chegaria bem a tempo… de ver o ônibus passar à toda por mim, com o motorista a ignorar meus acenos frenéticos, como ocorrera tantas outras vezes.

Súbito me vem à mente certa lei universal; novamente questiono se seu formulador não teria percebido a existência de uma força oculta a permear a realidade com o propósito de galhofar conosco diariamente.

Outros cinco minutos me escapam. Olho em volta, suspirando pesadamente. Vejo o matagal alto e poluído, um vira-lata a vagar sem rumo, o caos barulhento da obra próxima; na estrada poeirenta, carros de vários tipos – mas nenhum ônibus – alternam-se em ambos os sentidos.

Noto um resquício de sombra projetada pela placa de identificação do ponto. Buscando seu abrigo, retiro a mochila das costas e apanho um livro. Permito-me entreter com a leitura por alguns minutos e percebo, tarde demais, um grande vulto vermelho e branco passar a mais de noventa por hora ao meu lado: o maldito ônibus!

Exasperado, espanto mais alguns minutos com meus impropérios. Guardo o livro com fúria e, respirando fundo, apanho o fone de ouvido do celular. Quarenta minutos mais tarde, a lista de músicas já se repete pela terceira vez. Comprometendo-me a atualizá-la o quanto antes, eu percorro as estações de rádio, mas nada me agrada.

Guardando o aparelho, noto a aproximação de um homem esbaforido, suado. Respondo ao seu cumprimento, mas evito como posso as suas tentativas de puxar conversa – não o conheço nem estou com saco para ouvir sobre suas dificuldades. Quando penso que sua insistência não terá fim, avisto ao longe o bendito ônibus.

O contentamento logo dá lugar à lamúria: uma multidão se amontoa dentro do veículo. Sem alternativa, submeto-me a mais esta provação. Espremendo-me, encontro espaço entre uma senhora com sacolas de supermercado jogadas aos pés e um gigante musculoso cujo cotovelo paira ameaçadoramente sobre minha cabeça.

Sem espaço para apanhar o celular ou o livro, nem disposição para conversas, permito-me a listar, mentalmente, as razões pelas quais detesto tanto as viagens de ônibus: passagens caras, veículos mal cuidados, desrespeito e incivilidade. Nada, porém, é pior que a inanidade, a total e absoluta falta do que fazer.

Quanto tempo precioso é perdido nas longas esperas e durante as viagens, prolongadas não só pelas paradas constantes, mas também pelo trânsito cada vez mais caótico das metrópoles. A lotação torna tudo mais penoso, afinal, com a atmosfera pesada de odores e calor e pessoas sendo atiradas pelas janelas, quem terá disposição para desfrutar de uma leitura, música ou boa conversa?

Minha mente é invadida pelas lembranças de atividades pendentes: as etapas do projeto, os estudos, a consulta ao médico, o favor ao amigo. Então, suspiro pelo que deve ser a vigésima vez naquela tarde e afasto qualquer pensamento. Inconscientemente, coloco-me num estado de torpor e torno-me como os demais passageiros, apenas outro zumbi a caminho do trabalho.

Por todo o trajeto restante, resigno-me a ver a vida passar através da janela suja.

O efeito nhé – Crônica Convidada

A FIFA anunciou a mascote da Copa do Mundo de 2014. Um evento ainda está sendo programado para oficializar sua apresentação ao grande público e um concurso na internet está acontecendo para definir o seu nome. Nossa mascote? Um tatu-bola.

Olhei bem para a carinha dele hoje de manhã antes de precipitar um julgamento: olhos grandes, em desproporção ao rosto, que exploram bem a artimanha clássica de ilustradores que pretendem conferir inocência e amabilidade ao desenho; sutilmente trabalhado nas cores verde, amarelo, azul e branca, para evidenciar o patriotismo; uma expressão sapeca e uma postura articulada.

Contudo, minha inevitável primeira impressão não foi inspiradora. Um misto de desapontamento e conformação foi traduzido em um bico e um resmungo: “Nhé”. Por que o cândido tatuzinho não me inspirou? Por que não vi nada além de mediocridade em seus redondos e infantis olhos verdes? Em busca de acalento, li os comentários em alguns portais onde a notícia havia sido publicada.

Os comentários simpáticos como “as crianças vão adorar”, “até que ele é bonitinho” e “seria pior se fosse um macaco”, estão afogados em um mar de críticas que foram além do “nhé” e que beiraram o nojo e a repulsa. Separei alguns dos mais inflamados:

  • Ridículo. Me lembrou um Avatar;
  • Parece que foi um aluno da turma iniciante de Design da Microlins quem fez;
  • Maurício de Souza, socorro;
  • Tem cara de tartaruga;
  • É pior que a logo da Copa;
  • Será isso um Clipart do Word 97?
  • Perfeito! Escolheram um bicho que se enterra em um buraco, come carniça e que vive com a bola nas mãos. Podia chamar Mensalinho;
  • Uma mascote feia é o menor de nossos problemas! Ainda faltam 12 estádios, 1 seleção, 1 técnico, 30 hotéis, 14 aeroportos, 120.000 km de rodovias, 2.000 km de metrô, 6 trens-bala, 115 favelas pacificadas, 33.000 soldados preparados, 2000 restaurantes e 150.000 motoristas de taxi falando inglês;

Por mais que a clemência ao gênio Maurício de Souza tenha feito sentido para mim, assumi a obrigação de defender o bicho. Nossa mascote não é visualmente pior que o ursinho Misha, símbolo das Olimpíadas de Moscou, em 1980. Até hoje ele é a mascote mais amada e lembrada dos jogos, tanto que eu, nascida em 1990, conheço a cena do mosaico choroso na festa de encerramento.

No entanto, não foi a fofura de Misha, ou técnica impecável de seu autor que o imortalizou no imaginário global, mas o orgulho russo em ostentar o ursinho. Na contramão da lógica, o costume nacional é desvalorizar o produto interno e minar todas as suas potencialidades. Se nós não gostamos de nosso trabalho, por que outros haveriam de gostar? Ao criticar o Brasil, o mundo segue a tendência que nós mesmos começamos.

Nosso tatu-bola só é inexpressivo, pois nenhum valor foi agregado a ele ainda. Outros símbolos, hoje ícones mundiais, um dia também não tiveram valor. Aposto que já acharam o símbolo da Nike imbecil , pouco menos expressivo que um acento ortográfico. Precisamos entender que o desenho, por si só, não será motivo de inspiração. A inspiração está no que ele significa e representa: o nosso país, o nosso povo e a nossa pentelhice.

Sobre a autora

Lorena Otero é jornalista e trabalha em uma agência de comunicação. Fora os textos do trabalho, há um ano que só lê o Escriba, revistas e os livros do George Martin. Fica feliz na época de horário político e detesta verduras e insetos.

Já escreveu um livro infantil de quatro páginas quando tinha sete anos e acreditou quando a professora disse que ela tinha jeito com as palavras. Deviam prestar mais atenção nos profissionais de educação deste país.

Para saber mais:

  1. Coluna de Lauro Jardim na Veja: artigo que anuncia a mascote da Copa de 2014 e inspirou a cronista Lorena Otero.

Tolkien é Tolkien, Martin é Martin – Crônica

Outro dia, enquanto passeava por uma livraria, eu notei uma conversa entre dois amigos. Um deles tinha em mãos A Guerra dos Tronos, o primeiro volume da série de fantasia de George R. R. Martin. Ele falava sobre a história, o autor, e a série de TV, achando um absurdo que o outro não os conhecesse e decidido a convencê-lo a comprar o livro.

Dentre os muitos argumentos utilizados pelo primeiro, que chamarei apenas de marqueteiro, o mais curioso foi: “se gostou d’O Senhor dos Anéis não tem como não gostar deste. O Martin se inspirou no próprio Tolkien”. A resposta pouco convencida e questionadora do outro foi esta: “e quem disse que gostei de Senhor dos Anéis? Curti demais os filmes, muito massa, mas os livros? Nem passei do primeiro”.

Com aquilo na mente, eu me afastei. Circulando pelo lugar, apanhei alguns livros de gêneros semelhantes, li suas capas e contracapas. Então percebi que o argumento do marqueteiro é mais comum do que parece e que há muita verdade na resposta do questionador – exceto pela crítica “velada” a Tolkien, seu maldito herege!

Comparações deste tipo não têm fundamento, não passam de estratégias comerciais baratas e apelativas. Afirmar que quem gostou da saga de Harry Potter vai adorar os livros de Percy Jackson, por exemplo, não faz mesmo sentido. Um fã de Stephenie Meyer (Crepúsculo) talvez não goste de E. L. James (Fifty Shades of Grey), mesmo esta tendo se inspirado naquela.

Particularmente, conheço quem ache Tolkien moroso e odeie sua obra mais famosa, mas que se apaixonou pelos livros de Martin. Como isso é possível? Ora, é simples: cada autor é único e tem as próprias armas para cativar (ou não) os leitores. Não se pode colocar todos no mesmo pacote apenas porque escrevem o mesmo gênero.

O argumento do marqueteiro rui por completo quando constatamos que não se aplica nem aos trabalhos de um mesmo escritor. Antes de sequer conhecer a existência do O Senhor dos Anéis, li O Hobbit e gostei muito. O apelo do marketing me conduziu para a trilogia, da qual eu esperava nada menos do que a perfeição. Mas não foi bem assim.

Não há como negar que a trama é fantástica. Contudo, eu também não encarei facilmente a primeira metade de A Sociedade do Anel. Minhas impressões melhoraram em As Duas Torres, mas sofreram um abalo em O Retorno do Rei. Contudo, no geral, fiquei satisfeito o bastante para experimentar O Silmarillion, novamente seduzido pelos marqueteiros.

Até hoje não cheguei sequer à metade deste livro – já tentei por três vezes, em momentos distintíssimos da vida, por achar-me ainda imaturo para apreciá-lo. Como explicar? É culpa do filho de Tolkien, responsável por remendar as histórias inacabadas deixadas pelo pai falecido? Talvez, mas para mim esta é uma desculpa esfarrapada.

O Hobbit me conduziu a O Senhor dos Anéis e este a O Silmarillion, e, ao longo do caminho, o nível de encantamento pelo escritor diminuiu. Mas isto está errado, não? Ao gostar dos livros de Tolkien eu não deveria gostar de outros cujos autores se inspiraram neste? Como, então, é possível que eu não goste de outros trabalhos do próprio Tolkien?

Não sei, é um mistério. A questão aqui é não se deixar influenciar por este argumento frágil, nem para o bem nem para o mal. Trata-se de não ler nem deixar de ler algo porque gostou ou não do livro de mesmo gênero de outro (ou do mesmo) escritor.

Não se deve julgar antes de conhecer detalhes sobre a obra, opiniões de outros leitores. Se ainda assim achar que vale ou não a pena arriscar, ótimo. O importante é ser questionador.

Para saber mais:

  1. J.R.R. Tolkien X George R. R. Martin: episódio especial do Literatus Cast, podcast do site Homo Literatus.
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