No balcão do bar, Muhammad Ali me mediu com olhos duros. Um instante depois, ele bufou, cheio de marra. Devia achar que o franzino aqui não era ameaça. Nem liguei. Só queria saber das curvas da candidata a Globeleza ao lado dele. Era uma noite fria, mas a morena estava à vontade no vestido – ou seria uma blusa? Até o Papa babaria diante da mulher: cachos escuros caídos sobre ombros nus, pelinhos amarelos pelas coxas adentro, perfume alucinante fluindo da pele lustrosa.
Um toró de braço espremeu a cinturinha dela e dedos tamborilaram no alto das nádegas. O brutamonte se esbaldava. A inveja doeu no estomago (ou seria fome?). Daí eu escutei aquelas vozes e quase explodi de ri. É, meu povo, que outros estragos essas bombas andaram fazendo? Que Ali soasse como uma soprano não incomodava a Globeleza – na verdade, de tão rouca, ela agora mais lembrava uma panicat.
Eu quis me sentar longe do casal de matracas, mas o lugar ainda estava lotado. Já que ia esperar mais, por que não molhar a garganta? Do lado de lá do balcão, uma branquela beiçuda lavava algo na pia e me ignorava. Dirigi o apelo sedento a um rapaz de avental que vi correndo até o freezer. Já vou, me respondeu com a cabeça. Equilibrando seis latas de Skol, ele voltou a toda pela portinhola perto do caixa e apanhou uma cadernetinha preta. Antes de sumir lá nos fundos do bar, ainda assentiu para outras três mesas.
Tremenda putaria colocar três pessoas para atender, o quê, três dúzias de pessoas? Pior, em uma sexta-feira! Ou seriam apenas duas, já que o caixa parecia abandonado? Que sacanagem despencar lá da capital pra implorar bebida no tal novo point do qual todo mundo tem falado. Cidade pequena tem dessas merdas. Ao invés de aproveitar o sucesso pra investir na melhoria do lugar, o que o dono faz? O muquirana corta custos, aumenta preços. Quem não gostar que fique em casa ou vá à quermesse da igreja.
Foda-se. Passo bem sem esse lugar, obrigado. Talvez ainda dê pra encontrar a turma e ver as pervas dançando alucinadas. Vai querer o quê, amigo?, era o equilibrista frenético ao resgate, mais veloz do que o Papa-Léguas. Opa-opa, gorjeta indo embora. Bip-bip. Vai querer o quê, amigo? Eu já ia dispensá-lo com uma torra, mas tive uma visão que me fez desistir. Uma Coca-Cola; gelo e limão, pedi – a garganta queria álcool, mas eu tinha uma longa estrada de volta pra pegar. Indiquei um lugar perto da fachada e, sem dar mais atenção ao rapaz, fui atraído por aquelas joias.
O pedido não demorou – ou talvez tenha demorado, não sei bem. Mergulhado no mar verde daqueles olhos eu tinha perdido toda a noção do tempo. A garota que eu contemplava perdia feio para a Globeleza madura e sinuosa de Ali; tinha cabelos chamativos, mas tão dourados e lisos que não poderiam ser naturais; a maquiagem de gueixa era uma máscara. Ela não era feia, só estava pouco abaixo dos meus padrões. Ainda assim, não resisti às esmeraldas que faiscavam em seu rosto.
Meu fascínio incontido foi notado com satisfação. Sei reconhecer as sutilezas femininas nos gestos, olhares, respiração; tive mulheres o bastante para isso. Ela gostou de algo em mim, o que me surpreendeu. Uma maré péssima tem me carregado nos últimos tempos; eu chego a duvidar de que terei outra mulher tão cedo. Sim, ainda, pois naquela noite hesitei. Por que não tomei uma atitude? Por que me contentei em admirar aqueles olhos à distância até que eles saíssem da minha vida da mesma forma que entraram? Não faço ideia.
Enquanto escrevo sobre aquela noite perdida – apenas mais uma entre tantas em minha vida – tento encontrar respostas convincentes. Mas de duas coisas tenho certeza: lamento minha hesitação (desdém? covardia?) e torço por outra chance com a garota de olhos sobrenaturais. Talvez assim eles parem de me atormentar todas as noites em meus sonhos.