Categoria: Histórias (Página 2 de 2)

4. Sombras e Desconfianças – Reinos de Aventuras

Chovia a cântaros e nenhum outro som ecoava no abrigo. O ar estava pesado e a luz indistinta da lamparina criavam sombras ameaçadoras. Sentados em cantos opostos, Taldor Fendeaço e Rhístel Sanguélfico trocavam olhares, buscando desvendar os pensamentos um do outro.

Rhístel sabia avaliar as pessoas e orgulhava-se disto. Todavia, não precisava valer-se deste seu talento natural para adivinhar o que ia à cabeça do outro: o desconforto era evidente na carranca, no bico proeminente e nos olhos negros cerrados sob as sobrancelhas grossas. Não que se importasse; já se acostumara a ignorar aqueles que o prejulgavam e teria feito o mesmo ali, não fosse o temor por sua vida e pela de seu amigo. O que aconteceria quando a tempestade (e a trégua) cessasse?

Por sua vez, Taldor, amofinado, repensava sua reação inicial. Permitira que seu julgamento fosse influenciado pelo mesmo orgulho e preconceito que o levaram abandonar seu povo. Ainda que haja muito convivesse com outras raças, ainda demonstrava muito da desconfiança de seus pares – mais até do que gostaria de admitir.

– Estou curioso sobre este lugar. Estes entalhes não revelam muita coisa.

Era a voz estridente do halfling. Alheio à animosidade entre os dois, ele perambulara pelo abrigo incessantemente desde sua chegada.

– Lembro-me das histórias que escutei lá em Fortenovo. Falavam de guerras, goblinóides e tumbas espalhadas por toda esta região.

O anão tentava ignorar a tagarelice do outro, enquanto sua mente trabalhava. Parecia-lhe inconcebível a parceira do baixinho de pés peludos com um mestiço drow. Por que…

– Dizem que é possível encontrar coisas valiosas em tumbas; joias, ouro, relíquias antigas. Vocês acham que podemos estar numa tumba?

Um sonoro e exasperado sim escapou por entre lábios grossos. Seria pedir demais por um pouco de silêncio? Pensou numa forma de aquietar o outro, então falou novamente com sua voz poderosa:

– E tem mais: esta tumba é maldita! Se fosse tu, me sentaria quietinho. As sombras dos mortos podem se interessar por ti, baixote.

Aquilo silenciaria o tagarela, tinha certeza.

– Sombras dos mortos? Acha que podemos estar em perigo?

Equivocara-se. Bufando, silenciou-se e viu o outro se voltar para o meio-drow em busca de uma resposta, mas tudo o que este encontrou foi um dar de ombros.

Meldeau ponderou sobre aquelas palavras. Seria a tumba assombrada? Sorriu por dentro ao pensar na possibilidade de encontrar um fantasma – ah, as coisas que este poderia lhe revelar sobre o “outro lado”! Isto é, se fosse um tipo amistoso, é claro.

Ainda pensando a respeito, ele passou a analisar as portas de pedra maciça. Não havia qualquer trinco, maçaneta ou mecanismo que as abrisse. Era como se aqueles blocos imensos tivessem sido simplesmente encaixados naqueles vãos. Seria preciso uma força descomunal para fazê-lo!

Um clarão e um estrondo preencheram o ar e o lugar todo estremeceu por um instante; partículas de poeira caíram do teto. O halfling encolheu-se e olhou temeroso para a porta mais próxima. Teria ela vibrado?

– Se fosse você, eu me afastaria daí, Mel, as sombras dos mortos podem te agarrar. – zombou o meio-drow ao notar a apreensão do amigo.

****

Sentado diante de uma porta, Meldeau estava tão distraído que sequer percebeu ser o único ainda acordado – aparentemente, o cansaço sobrepujara os outros dois. Contudo, nenhum sono seria capaz de aplacar a curiosidade do halfling.

Ele tentara desvendar os afrescos desgastados dispersos pelas paredes, mas estes lhe revelaram pouco: um reino assolado por guerras, guerreiros derrotados honrados como patronos dos vivos, riquezas enterradas com seus senhores em tumbas. Nada diferente do que escutara em sua passagem por Fortenovo.

Taldor dissera que estavam numa tumba. Se aquilo era verdade, então o que poderiam encontrar ali? Haveria algum tesouro, talvez? Detestava a sensação de incerteza. Precisava descobrir o que havia atrás das portas, mas abri-las parecia impossível. Então se lembrou de que anões eram seres notórios por sua familiaridade com rochas… e aquelas eram portas de pedra, não eram?

O raciocínio pareceu perfeitamente lógico. Lançou um olhar fortuito para a figura atarracada e cabisbaixa num canto escuro. Precisava convencer o desconfiado a ajudá-lo, mas não seria fácil. Valer-se-ia de uma técnica de persuasão que aprimorara ao longo dos anos: insistir, insistir e insistir, como uma criança que atazana o pai até que este lhe realize qualquer vontade apenas para livrar-se da chateação. Obviamente, corria o risco de levar uns bons safanões – como acontecia na maioria das vezes, na verdade –, mas as chances de sucesso melhoravam sempre que Rhístel estava ao seu lado.

Decidido e sem paciência para esperar o amanhecer, Meldeau levantou-se para acordar o anão.

Um estrondo, um tremor, e, de repente, a porta diante dele caiu.

Assustado com o trovão, o halfling tropeçou e bateu as costas no chão, escapando por pouco de ser esmagado. Dois outros estrondos soaram não muito distantes.

Rhístel pôs-se de pé num movimento rápido demais para alguém que estivera dormindo. Com o florete em punho, ele escrutinou o ambiente. Diante dele, Taldor estava sentado com uma expressão de confusão, olhos vidrados – fora despertado de um sono pesado, mas sua precaução lhe permitira apanhar o martelo de batalha prontamente.

Olhares desconfiados foram trocados.

Gemidos abafados chamaram a atenção dos dois para alguém caído numa nuvem de poeira. Quando o meio-elfo ajudou Meldeau a levantar-se, logo entendeu o que acontecera: alguma coisa abalara a estrutura do outeiro, provavelmente um raio que caíra perto demais. As portas de pedra jaziam no chão, dando lugar a três aberturas sombrias e nada convidativas.

Continua…

Uma palavra sobre a ambientação desta série: as histórias ocorrem no mundo fantástico de Faerûn, descrito no cenário de campanha de RPG Forgotten Realms (Reinos Esquecidos). Elas também foram inspiradas em diversos módulos de aventuras criados para o jogo Dungeons & Dragons (Masmorras e Dragões). Todos os direitos sobre estas marcas pertencem à editora Wizards of the Coast, não sendo minha intenção violá-los. Estes textos são uma ficção de fã (do inglês, fan fiction ou FanFic) e não objetivam qualquer lucro.

Para saber mais:

  1. Capítulo Anterior – Encontro Inesperado
  2. Reinos de Aventuras, histórias de fantasia: onde explico o modo como pretendo publicar esta série no blog.

3. Encontro Inesperado – Reinos de Aventuras

Taldor encontrou as ruínas da torre momentos antes da tempestade desabar ruidosamente. Todavia, para seu desgosto, o local não fornecia proteção. A única alternativa era abrigar-se sob o outeiro onde a antiga construção fora erigida. Não desejava fazê-lo, mas percebeu que não tinha escolha quando os primeiros raios cortaram os céus.

Circundando a encosta, ele procurou pela pesada pedra que bloqueava a passagem subterrânea. Surpreendeu-se ao deparar com um grande buraco no terreno; para além dele, uma escuridão nada convidativa. Fragmentos cobertos pela grama revelavam que a pedra fora destruída.

Gotas de chuva lhe atingiram o corpo. Cauteloso, atravessou a entrada. Quando seus olhos de anão se ajustaram à escuridão, viu, em tons de cinza, uma câmara vazia e empoeirada. As paredes não eram naturais, mas cortadas; arabescos despedaçados e pinturas desgastadas sugeriam que o lugar já fora decorado cuidadosamente. Três portas de pedra maciça assomavam à esquerda, à direita e diretamente à frente.

Escolheu um canto escuro e sentou-se defronte às portas, mas não sem antes cuspir duas vezes no chão, como sempre fazia em lugares como aquele. Ficou ali por um bom tempo, em silêncio, escutando os sons vívidos da tempestade que castigava as colinas do lado de fora. Tentava ignorar o que sabia sobre aquele local. Concentrou-se nas runas incrustadas em seu martelo de batalha e logo lembranças melhores vieram à mente.

Um som como o de pedras rolando soou acima do barulho da chuva, sucedido por um pesado baque. Algo caíra pela encosta íngreme do outeiro. Taldor pôs-se de pé em prontidão, o martelo firme nas mãos.

– Erra-me, Brandobaris! Esfomeado, encharcado e agora enlameado!

A voz de criança atraiu-o para a entrada a passos lentos. Relaxou o aperto no cabo de sua arma. Um raio cruzou os céus e o brilho fugaz delineou uma sombra diminuta. Ainda tentava assimilar o que vira, quando a voz infantil falou novamente:

– Amigo… seja quem for, saiba que sou um amigo. Estou fugindo da tempestade, é só.

Havia algo familiar naquela voz e, por um instante, pensou que talvez não fosse realmente de uma criança. Novamente apertando a haste do martelo, firmou os pés no chão e berrou:

– Mais perto, estranho. Venha devagar e deixe ver tua fuça!

Uma lamparina foi acessa. Através da entrada, a luz espantou as trevas e revelou o inesperado visitante: como imaginara, tratava-se de um halfling – particularmente esguio e diminuto, era um exemplar curioso daquela raça de seres pequeninos que pareciam sempre estar de bem com a vida.

Por outro lado, Meldeau surpreendeu-se com a figura atarracada e robusta, trajada numa cota de malha bem cuidada e portando um martelo de aparência letal – trazia, ainda, uma pequena mochila às costas. Já vira muitos anões de perto, mas aquele era estranho: não tinha barba e mantinha os cabelos negros bem rentes à cabeçorra. Decidiu tomar a iniciativa ao notar que os dedos poderosos aliviaram a tensão em volta da haste de sua arma. Apresentou-se com uma mesura. A resposta veio seca:

– Fendeaço… Taldor Fendeaço.

O anão não esperava que o pequenino criasse problemas. Contudo, não deixara de notar que ele trazia uma pequena maça presa à cintura e permaneceria alerta até que as palavras pacificadoras fossem proferidas, como era de praxe.

Silêncio.

– Uma de duas: ou tua intenção aqui não é boa, ou é tua primeira viagem por estas bandas.

As palavras deixaram Meldeau desconcertado. Esperava uma atitude mais receptiva. Estava apático, sem saber o que fazer ou dizer. Piscando, inclinou ligeiramente a cabeça, num gesto genuíno de incompreensão.

Taldor julgou que a segunda opção era correta e, com voz grave, falou sobre um velho costume da região: durante as tempestades elétricas, todos os que buscavam abrigo em um mesmo local firmavam uma trégua; não poderia haver qualquer luta até o fim do temporal. Aquele era um acordo silencioso, mas havia quem preferia formalizá-lo com as palavras adequadas. O anão era um deles.

– Um costume muito sensato, se me permite dizer. De acordo, então – disse o halfling; sorrindo, lembrou-se das palavras exatas que o outro acabara de revelar. – Paz na tempestade?

A trégua foi confirmada. O sorriso de Meldeau se alargou, mas desapareceu quando este notou um movimento nas sombras próximas. Quase se esquecera de Rhístel! Por um instante, imaginou o estrago que o grande martelo de batalha faria ao seu pequeno crânio caso seu portador se sentisse tapeado ou ameaçado. Precisava ser cuidadoso agora, pois sabia o efeito que o companheiro causava nas pessoas à primeira vista.

– E… Esqueci-me de dizer-lhe algo, amigo… Taldor? Acontece que não estou viajando sozinho.

Como que reagindo àquelas palavras, um vulto esguio e encapuzado saltou das sombras à sua esquerda, aproximando-se da luz irradiada pela lamparina.

– Paz na tempestade.

As palavras soaram como um sussurro, mas o anão as compreendeu. Sobressaltado pela súbita aparição, agora estava mais alerta do nunca. Encarou a dupla, o olhar desconfiado ora sobre um ora sobre outro. Confirmou a trégua. Então o novo visitante removeu seu capuz demoradamente e o encarou com olhos de negrume. Mas não foram estes que se destacaram e sim os cabelos prateados, quase brancos, e a pele escura como obsidiana. Por um instante, não pôde acreditar no que via, mas as orelhas pontiagudas não dava margem a dúvidas.

Drow – disse com desprezo, erguendo o martelo ameaçadoramente. – Que trapaça é esta?

Meldeau sabia ser ele o interpelado, ainda que o outro encarasse Rhístel fixamente. O amigo tinha o semblante severo; seu corpo permanecia imóvel, as mãos caídas ao lado do corpo – a esquerda estava próxima ao cabo do florete cuja bainha trazia presa à cintura. A tensão entre ambos era palpável e ele precisava fazer algo; ergueu os braços de modo apaziguador e sorriu nervosamente:

– Não há trapaça. Este é Rhístel, um bom amigo. Conhecemo-nos há muito tempo e asseguro-lhe que é de confiança.

Drow não são de confiança! Não passam de monstros assassinos! Só um tolo confiaria numa raça de cães traiçoeiros… ou nos que lidam com eles!

– Não precisamos de sua confiança, apenas de um abrigo. – Rhístel falou em tom sombrio.

Aquela atitude amargurada nunca facilitava as coisas, mas como poderia censurá-lo? Sequer ousara imaginar as dificuldades que o companheiro enfrentara por conta de sua ascendência. Ainda assim, não era preciso provocar uma luta inútil.

– Ouça-me, Taldor… amigo… entendo como se sente, acredite. Também me senti assim certa vez, para minha vergonha. Mas Rhístel já me deu provas suficientes de seu caráter e posso lhe dar minha palavra que ele é de confian-

– A palavra dum halfling estranho e desonesto! Bá!

– Ora! Já que minha palavra não é o bastante, que tal ao menos honrar a sua própria?! Rhístel invocou a trégua!

Uma bofetada não deixaria o anão mais espantado. A atitude indignada e atrevida do pequeno o fez sentir-se estúpido. Cedera ao mesmo preconceito odioso que o levara a partir de sua terra natal. Mas pelo machado de Gorm, aquele era um drow! Conhecia as histórias hediondas sobre tal raça. Todavia, comprometera-se com a trégua e deveria manter sua honra ou não seria digno de seu nome.

Taldor abaixou o martelo e fulminou a dupla de estranhos com o olhar; sem se virar, afastou-se para um canto escuro. Respeitaria a paz na tempestade pelo tempo que esta perdurasse. Se fosse preciso, lidaria com ambos mais tarde.

Suspirando aliviado, o halfling indicou um lugar bem afastado para o companheiro. Seguindo nos calcanhares de Rhístel, pensou que este sempre teria problemas ao lidar com os outros enquanto cultivasse a fala audaciosa, os métodos esquivos e a mania de esgueirar-se pelas sombras. E antes de sentar-se, não pôde evitar um comentário atrevido:

– E para o seu governo, Taldor Fendeaço, Rhístel é apenas MEIO drow.

Continua…

Uma palavra sobre a ambientação desta série: as histórias ocorrem no mundo fantástico de Faerûn, descrito no cenário de campanha de RPG Forgotten Realms (Reinos Esquecidos). Elas também foram inspiradas em diversos módulos de aventuras criados para o jogo Dungeons & Dragons (Masmorras e Dragões). Todos os direitos sobre estas marcas pertencem à editora Wizards of the Coast, não sendo minha intenção violá-los. Estes textos são uma ficção de fã (do inglês, fan fiction ou FanFic) e não objetivam qualquer lucro.

Para saber mais:

  1. Capítulo Anterior – Pelos Ermos Verdejantes
  2. Reinos de Aventuras, histórias de fantasia: onde explico o modo como pretendo publicar esta série no blog.

2. Pelos Ermos Verdejantes – Reinos de Aventuras

Taldor Fendeaço interrompeu os passos para lançar um olhar preocupado para o céu. Um sol pálido se fez notar no oeste por trás de nuvens cinzentas. Um vento frio soprou através dos cumes gramados, carregando um aroma bem familiar ao jovem anão: chuva. O tempo mudara novamente.

Era sempre assim naquela região, àquela época do ano. Não pela primeira vez, ele atravessava os ermos verdejantes em direção a Arnglar. O vilarejo não tinha qualquer atrativo, mas o apreço que desenvolvera por seus habitantes o tornavam um segundo lar.

Por seus cálculos, a viagem não duraria muito mais. Estava farto daquele território desolado e das chuvas diárias. Naquele momento, outra tempestade se formava sobre sua cabeça; precisava encontrar novo abrigo. Os temporais eram muito fortes, principalmente no verão, e seu camisão de cota de malha seria um chamariz perfeito para os raios mortíferos.

Correndo os olhos pela paisagem, sentiu-se perdido momentaneamente. Os ermos não forneciam pontos de referência e até mesmo um rastreador experiente, munido de um mapa ou dois, poderia se perder facilmente. Taldor não era um rastreador; estava longe de conhecer todos os caminhos. Ele tampouco confiava nos mapas dos Reinos Fronteiriços – estes jamais acompanhavam o ritmo vertiginoso com que reinos e cidades surgiam e desapareciam por ali. Contudo, dispunha de uma ferramenta útil que sempre lhe indicava para onde seguir.

Certificando-se da direção a tomar, Taldor forçou um pouco a memória e lembrou-se de um local situado não muito distante de onde se encontrava. Embora a idéia de abrigar-se naquele buraco não lhe agradasse, sabia não ter escolha. Lançando outro olhar preocupado para os céus, ele preparou suas coisas e aumentou o ritmo das passadas, esperando atingir o abrigo antes que a tempestade o atingisse.

* * * *

O poente refletiu na pedrinha erguida contra o céu. Recostado no tronco de uma árvore frondosa, Meldeau Desbravaterras admirava seu amuleto e descansava de uma caminhada que considerara longa demais. A visão da pedra polida girando diante de seus olhos cor de mel sempre relaxava o jovem halfling.

Magnífica. Encantava-se com o branco que jamais encardia e com o brilho sobrenatural emitido quando tocada pelos raios solares. Embora a pedra parecesse mágica, ele sabia não haver nela nada de extraordinário – nada além de sua própria beleza e origem. A imagem da lagoa sagrada invadiu sua mente, trazendo lembranças da terra natal. Há quanto tempo partira? Não lembrava bem.

Desviou o olhar para o mar de colinas que se estendia por toda a sua volta. Aquela era uma terra de ninguém, sem atrativos e sem vida. Não havia nada ali além de grama. A árvore sob a qual se encontrava poderia muito bem ser a única num raio de muitos quilômetros. Sentia falta das flores e das árvores da floresta, sentia falta da lagoa. Estava muito longe de casa.

Um farfalhar sobre a cabeça afastou a saudade. Colocou o pingente rústico em volta do pescoço, escondendo a preciosa pedra sob o corselete de couro batido, e olhou para o topo da árvore. Viu um vulto mover-se com agilidade por entre os galhos para cair de pé ao seu lado. Sorriu como sempre fazia diante das estripulias acrobáticas de seu companheiro de viagem.

Rhístel Sanguélfico retribuiu o sorriso com uma piscadela. Sabia que o halfling divertia-se com seus reflexos, ainda que não compreendesse o porquê. Considerava natural a graciosidade de seus movimentos, algo inerente à herança élfica e próprio de seu corpo esguio e diminuto. Acariciando os cabelos espetados que caiam sobre as orelhas ligeiramente pontiagudas, mirou o céu cinzento com olhos negros inteiramente humanos.

Erguendo-se em silêncio, Meldeau olhou para o outro, aguardando o parecer. O rosto de feições delicadas e escuro como obsidiana fusca estava impassível. Quando o silêncio se prolongou, achou que deveria tomar a iniciativa.

– E então, Rhís? – indagou com sua voz estridente.

– Tinha razão, a tempestade vai ser forte. Precisamos nos abrigar. Vi algumas ruínas ao norte.

– Eu te disse, não disse? Os pêlos de meus pés nunca me traem! Sempre posso contar com eles para evitar coisas ruins!

Rhístel encarou a figura de cabelos encaracolados e sorriu; achava curioso que tanto as madeixas quanto os tufos de pêlo nos peitos dos pés tivessem a mesma cor flamejante.

– Quanto aos seus pêlos eu não sei, mas é certo que seus pés são bons para tirá-lo de enrascadas, Mel. – disse, fazendo troça.

Meldeau sorriu, corando de vergonha. Percebera ali a referência velada à partida apressada de Fortenovo, palco da mais recente encrenca provocada pela curiosidade quase infantil. O olhar do companheiro estava fixo sobre ele, como se esperasse que dissesse algo. Pelo visto, Rhístel ainda estava disposto a tentar entender o que, exatamente, havia acontecido naquela aldeia.

– A que distância as ruínas estão? – questionou, mudando o rumo da conversa.

– Não muito longe. Partindo agora, chegaremos antes que a água caia.

– Você não respondeu à pergunta. – um sorriso irônico assomou no rosto redondo.

– Nem você.

O halfling franziu o cenho.

– Desculpe, não percebi que havia feito uma.

– Não diretamente. – o tom de voz soara subitamente sério.

Meldeau olhou demoradamente para o norte, fingindo-se de desentendido. Soprando algo como “vamos indo então”, ele começou a caminhar apressadamente, sem olhar para trás.

Suspirando e seguindo no rastro do companheiro, Rhístel imaginou quando a razão da fuga de Fortenovo lhe seria revelada. Aborrecia-se com a constante esquiva do assunto; fosse o que fosse, achava-se no direito de saber, afinal, também fora envolvido. Respeitaria o silêncio do halfling por ora, então tentaria novamente. Tentaria quantas vezes fosse necessário, mas descobriria em que confusão Meldeau se metera daquela vez.

Continua…

Uma palavra sobre a ambientação desta série: as histórias ocorrem no mundo fantástico de Faerûn, descrito no cenário de campanha de RPG Forgotten Realms (Reinos Esquecidos). Elas também foram inspiradas em diversos módulos de aventuras criados para o jogo Dungeons & Dragons (Masmorras e Dragões). Todos os direitos sobre estas marcas pertencem à editora Wizards of the Coast, não sendo minha intenção violá-los. Estes textos são uma ficção de fã (do inglês, fan fiction ou FanFic) e não objetivam qualquer lucro.

Para saber mais:

  1. Capítulo Anterior – A Busca
  2. Reinos de Aventuras, histórias de fantasia: onde explico o modo como pretendo publicar esta série no blog.

1. A Busca – Reinos de Aventuras

Três figuras encapuzadas atravessavam a passos largos as terras do interior ocidental dos Reinos Fronteiriços. O véu da noite era a única proteção contra a atenção indesejada naquele mar de colinas desabrigadas. Poucos enxergariam o misterioso trio ali; as nuvens, arautos das tempestades elétricas tão comuns naqueles ermos, intensificavam a escuridão. Não havia qualquer alma viva num raio de muitos quilômetros em todas as direções.

Um dia inteiro havia passado desde o início da marcha ininterrupta; seu propósito impelia os três a prosseguir obstinadamente. Dispunham de um bolsão com suprimentos suficientes para saciar a sede e a fome por alguns dias, mas outra de suas necessidades não seria facilmente atenuada em terras tão despovoadas: combate. Privar-se de uma boa e sangrenta peleja, porém, não era tão desalentador quanto enfrentar o vento gélido e cortante e o ribombar ensurdecedor dos trovões.

Desconfiado de que seus comandados estivessem tão incomodados quanto ele com a exposição ao mal tempo, Rarnar se convenceu a continuar com a busca. O mapa esfarrapado que trazia junto ao peito indicava que logo chegariam ao outeiro. Os rabiscos no pergaminho de pele de ovelha eram claros: um dia de jornada a partir do acampamento dos salteadores com os quais “negociaram” sua aquisição. Daí ter-se decidido por seguir ininterruptamente; isto, e também a declaração de um dos salteadores de que o mapa conduziria a uma tumba repleta de tesouros. O nome mencionado pelo moribundo ainda ressoava na mente de Rarnar: Torre Alta. Era como o xamã lhe havia revelado.

Um repentino clarão azul-esbranquiçado desafiou a escuridão. Raios iniciavam sua dança caótica por entre as nuvens, iluminando brevemente as colinas. Os primeiros pingos de chuva caíram e o vento pareceu esfriar ainda mais. A tempestade piorava. Rarnar lançou um olhar temeroso para o céu e depois para os dois subalternos. Exceto pelas armas, nenhum deles carregava outro metal que pudesse servir de alvo para um raio fortuito, mas isto não garantia a segurança naquele descampado.

Rarnar deslizou a mão por baixo do manto e do corselete de couro batido a procura do mapa. Analisando novamente os rabiscos, ele imaginou se os humanos fedorentos não tinham mentido para salvar a própria pele pálida e despelada. Por um instante, desejou ser capaz de ressuscitar os mortos apenas para ter o prazer de matar e devorar novamente as vísceras daqueles ladrões de estrada falsos. Teria sido a história um embuste? Preferia acreditar que não. Até onde sabia a Torre Alta não era um local famoso entre as outras raças. Mesmo entre os de seu povo havia muitas tribos que sequer ouviram falar daquele lugar sagrado. Não podia ser uma trapaça…

– Rarnar! Vê! Na frente!

Os berros o despertaram de seu devaneio, chamando sua atenção para o horizonte adiante. De início, não viu nada além de uma mancha negra extensa e impenetrável. Contudo, não demorou até que um raio cruzasse o céu e afastasse a escuridão, permitindo que os contornos cinzentos de um outeiro se tornassem visíveis para seus olhos apertados; sobre este parecia haver as ruínas de uma pequena torre.

Rarnar enrolou o mapa manchado com sangue, guardando-o sob o corselete. Esboçando um sorriso tortuoso com os lábios grossos e a boca repleta de presas afiadas, ele disse com voz gutural:

– Passo firme, rapazes! Achamos!

As três figuras monstruosas urraram num misto de satisfação e alívio. Rarnar os conduziu em ritmo acelerado na direção do outeiro, pensando em como aquele achado iria lhe proporcionar uma posição confortável em sua tribo. Ele até podia imaginar a satisfação no rosto do Honorável Chefe quando lhe anunciasse pessoalmente que a Torre Alta havia sido encontrada.

Continua…

Uma palavra sobre a ambientação desta série: as histórias ocorrem no mundo fantástico de Faerûn, descrito no cenário de campanha de RPG Forgotten Realms (Reinos Esquecidos). Elas também foram inspiradas em diversos módulos de aventuras criados para o jogo Dungeons & Dragons (Masmorras e Dragões). Todos os direitos sobre estas marcas pertencem à editora Wizards of the Coast, não sendo minha intenção violá-los. Estes textos são uma ficção de fã (do inglês, fan fiction ou FanFic) e não objetivam qualquer lucro.

Para saber mais:

  1. Reinos de Aventuras, histórias de fantasia: onde explico o modo como pretendo publicar esta série no blog.

Reinos de Aventuras: histórias de fantasia!

Estava aqui escrevendo mais um conto quando atentei para o fato de que não costumo mostrar meu trabalho para outras pessoas. Ora, qual é o propósito de escrever histórias se não há ninguém para lê-las e opinar a respeito?

Decidi postar algumas histórias despretensiosas aqui no blog e optei por começar com algumas histórias de fantasia que tenho escrito já há algum tempo por puro prazer (e como um modo de aperfeiçoar meu estilo de escrita).

Reinos de Aventuras é inspirada em obras fantásticas como “O Senhor dos Anéis” (J.R.R. Tolkien), “As Crônicas de Gelo e Fogo” (George R. R. Martin), “As Crônicas de Dragonlance” (Margaret Weis; Tracy Hickman), etc. Quem já leu algum destes autores já está familiarizado com certos aspectos da literatura fantástica, como a existência de elfos, anões, magia e monstros.

De início, eu publicaria várias histórias completas, interligando-as para formar uma história maior, mas considerei que ler vários capítulos de uma vez no computador seria bem incômodo. Assim, optei por utilizar a estrutura dos seriados de TV.

Esta série está organizada da seguinte forma: há as partes, que seriam como os episódios de um seriado. Cada parte é dividida em capítulos, que seriam como as cenas de um único episódio. As partes reunidas constituem um arco, que seria a temporada do seriado.

Neste momento, a série está em seu primeiro arco/temporada (sem título definido), na primeira parte/episódio (Uma noite sombria) e no primeiro capítulo/cena (A Busca). Esta divisão fica mais clara na página de Histórias e só existe para permitir-me postar as histórias aos poucos.

O primeiro capítulo será postado amanhã! Fiquem ligados.

Uma palavrinha sobre a ambientação: as histórias ocorrem no mundo fantástico de Faerûn, descrito no cenário de campanha de RPG Forgotten Realms (Reinos Esquecidos). Elas também foram inspiradas em diversos módulos de aventuras criados para o jogo Dungeons & Dragons (Masmorras e Dragões). Todos os direitos sobre estas marcas pertencem à editora Wizards of the Coast, não sendo minha intenção violá-los. Estes textos são uma ficção de fã (do inglês, fan fiction ou FanFic) e não objetivam qualquer lucro.

Para saber mais:

  1. O que é Fan Fiction ou FanFic: artigo da Wikipédia; lista vários tipos de ficção de fã.
  2. Nyah! Fanfiction: site nacional criado para hospedar várias ficções de fãs; fornece pequenas aulas de português e dicas de escrita.
  3. Fan Fiction.net: o maior portal de ficções de fã que já conheci; está on-line há anos (em inglês, mas contém histórias em português).
  4. O que é RPG: artigo da Wikipédia; explica os principais conceitos por trás do famoso Role-Playing Game (Jogo de Interpretação de Papéis).
  5. Wizards of the Coast: editora que detém os direitos de publicação de Forgotten Realms e Dungeons & Dragons, marcas famosas entre os praticantes do hobby, isto é, RPG (em inglês).
  6. Valinor: completo site nacional sobre a obra de J.R.R. Tolkien, autor de “O Senhor dos Anéis” e “O Hobbit”. Recomendadíssimo!
  7. As Crônicas de Gelo e Fogo: breves informações sobre esta famosa série no site Sobre Livros; inclui links para compra das edições em português e resenha do primeiro livro.
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