Chovia a cântaros e nenhum outro som ecoava no abrigo. O ar estava pesado e a luz indistinta da lamparina criavam sombras ameaçadoras. Sentados em cantos opostos, Taldor Fendeaço e Rhístel Sanguélfico trocavam olhares, buscando desvendar os pensamentos um do outro.
Rhístel sabia avaliar as pessoas e orgulhava-se disto. Todavia, não precisava valer-se deste seu talento natural para adivinhar o que ia à cabeça do outro: o desconforto era evidente na carranca, no bico proeminente e nos olhos negros cerrados sob as sobrancelhas grossas. Não que se importasse; já se acostumara a ignorar aqueles que o prejulgavam e teria feito o mesmo ali, não fosse o temor por sua vida e pela de seu amigo. O que aconteceria quando a tempestade (e a trégua) cessasse?
Por sua vez, Taldor, amofinado, repensava sua reação inicial. Permitira que seu julgamento fosse influenciado pelo mesmo orgulho e preconceito que o levaram abandonar seu povo. Ainda que haja muito convivesse com outras raças, ainda demonstrava muito da desconfiança de seus pares – mais até do que gostaria de admitir.
– Estou curioso sobre este lugar. Estes entalhes não revelam muita coisa.
Era a voz estridente do halfling. Alheio à animosidade entre os dois, ele perambulara pelo abrigo incessantemente desde sua chegada.
– Lembro-me das histórias que escutei lá em Fortenovo. Falavam de guerras, goblinóides e tumbas espalhadas por toda esta região.
O anão tentava ignorar a tagarelice do outro, enquanto sua mente trabalhava. Parecia-lhe inconcebível a parceira do baixinho de pés peludos com um mestiço drow. Por que…
– Dizem que é possível encontrar coisas valiosas em tumbas; joias, ouro, relíquias antigas. Vocês acham que podemos estar numa tumba?
Um sonoro e exasperado sim escapou por entre lábios grossos. Seria pedir demais por um pouco de silêncio? Pensou numa forma de aquietar o outro, então falou novamente com sua voz poderosa:
– E tem mais: esta tumba é maldita! Se fosse tu, me sentaria quietinho. As sombras dos mortos podem se interessar por ti, baixote.
Aquilo silenciaria o tagarela, tinha certeza.
– Sombras dos mortos? Acha que podemos estar em perigo?
Equivocara-se. Bufando, silenciou-se e viu o outro se voltar para o meio-drow em busca de uma resposta, mas tudo o que este encontrou foi um dar de ombros.
Meldeau ponderou sobre aquelas palavras. Seria a tumba assombrada? Sorriu por dentro ao pensar na possibilidade de encontrar um fantasma – ah, as coisas que este poderia lhe revelar sobre o “outro lado”! Isto é, se fosse um tipo amistoso, é claro.
Ainda pensando a respeito, ele passou a analisar as portas de pedra maciça. Não havia qualquer trinco, maçaneta ou mecanismo que as abrisse. Era como se aqueles blocos imensos tivessem sido simplesmente encaixados naqueles vãos. Seria preciso uma força descomunal para fazê-lo!
Um clarão e um estrondo preencheram o ar e o lugar todo estremeceu por um instante; partículas de poeira caíram do teto. O halfling encolheu-se e olhou temeroso para a porta mais próxima. Teria ela vibrado?
– Se fosse você, eu me afastaria daí, Mel, as sombras dos mortos podem te agarrar. – zombou o meio-drow ao notar a apreensão do amigo.
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Sentado diante de uma porta, Meldeau estava tão distraído que sequer percebeu ser o único ainda acordado – aparentemente, o cansaço sobrepujara os outros dois. Contudo, nenhum sono seria capaz de aplacar a curiosidade do halfling.
Ele tentara desvendar os afrescos desgastados dispersos pelas paredes, mas estes lhe revelaram pouco: um reino assolado por guerras, guerreiros derrotados honrados como patronos dos vivos, riquezas enterradas com seus senhores em tumbas. Nada diferente do que escutara em sua passagem por Fortenovo.
Taldor dissera que estavam numa tumba. Se aquilo era verdade, então o que poderiam encontrar ali? Haveria algum tesouro, talvez? Detestava a sensação de incerteza. Precisava descobrir o que havia atrás das portas, mas abri-las parecia impossível. Então se lembrou de que anões eram seres notórios por sua familiaridade com rochas… e aquelas eram portas de pedra, não eram?
O raciocínio pareceu perfeitamente lógico. Lançou um olhar fortuito para a figura atarracada e cabisbaixa num canto escuro. Precisava convencer o desconfiado a ajudá-lo, mas não seria fácil. Valer-se-ia de uma técnica de persuasão que aprimorara ao longo dos anos: insistir, insistir e insistir, como uma criança que atazana o pai até que este lhe realize qualquer vontade apenas para livrar-se da chateação. Obviamente, corria o risco de levar uns bons safanões – como acontecia na maioria das vezes, na verdade –, mas as chances de sucesso melhoravam sempre que Rhístel estava ao seu lado.
Decidido e sem paciência para esperar o amanhecer, Meldeau levantou-se para acordar o anão.
Um estrondo, um tremor, e, de repente, a porta diante dele caiu.
Assustado com o trovão, o halfling tropeçou e bateu as costas no chão, escapando por pouco de ser esmagado. Dois outros estrondos soaram não muito distantes.
Rhístel pôs-se de pé num movimento rápido demais para alguém que estivera dormindo. Com o florete em punho, ele escrutinou o ambiente. Diante dele, Taldor estava sentado com uma expressão de confusão, olhos vidrados – fora despertado de um sono pesado, mas sua precaução lhe permitira apanhar o martelo de batalha prontamente.
Olhares desconfiados foram trocados.
Gemidos abafados chamaram a atenção dos dois para alguém caído numa nuvem de poeira. Quando o meio-elfo ajudou Meldeau a levantar-se, logo entendeu o que acontecera: alguma coisa abalara a estrutura do outeiro, provavelmente um raio que caíra perto demais. As portas de pedra jaziam no chão, dando lugar a três aberturas sombrias e nada convidativas.
Continua…
Para saber mais:
- Capítulo Anterior – Encontro Inesperado
- Reinos de Aventuras, histórias de fantasia: onde explico o modo como pretendo publicar esta série no blog.