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A Nostalgia em “The Country of the Pointed Firs” de Sarah Orne Jewett

Um livro obrigatório para escritores comprometidos em aperfeiçoar seu ofício.

A decadência da indústria pesqueira local desempenha um papel crucial na mobilidade social traduzida pela saída dos jovens de Dunnet Landing para outras regiões em decorrência da falta de oportunidades. O foco da escritora, entretanto, não é na construção de uma narrativa coesa, mas sim no desenvolvimento de um ambiente que permita aos leitores uma percepção aguçada das histórias de sofrimento e desilusões vividas pelos personagens.

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Os Frankensteins ainda estão Vivos

Frankenstein de Mary Shelley

“Se não posso inspirar amor, EU PROVOCAREI MEDO!”

O extraordinário da leitura é que poucas horas reservadas a bons livros nos permitem fazer associações entre a ficção e nossas próprias vidas. Afinal de contas, toda obra de ficção apresenta em suas raízes alguma dose de inspiração na realidade.

Tendo dito isso, analisarei a obra Frankenstein da autora britânica Mary Shelley, tentando fortalecer o argumento da contemporaneidade dos temas abordados por Shelley.

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Resenha: E de Extermínio (eBook)

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Saiba antes de ler: não sou crítico literário nem detentor da verdade absoluta. O texto abaixo relata as impressões que tive após a leitura deste livro e não traz quaisquer revelações quanto ao enredo.

Autor do elogiado romance O Alienado e de inúmeros contos, o fluminense Cirilo S. Lemos já demonstrou talento nato para desenvolver tramas e personagens fascinantes. Nesta criativa ficção científica retrofuturista, porém, Cirilo se supera. Publicado em formato físico e digital, E de Extermínio é uma das mais gratas surpresas editoriais de 2015.

No século XX, um Brasil alternativo liderado pelo Imperador D. Pedro III está à beira de uma crise: monarquistas, militares, comunistas e potências estrangeiras brigam pelo poder. Alheio às intrigas, um matador de aluguel consumido pela culpa e atormentado pelas visões de uma santa aceita um contrato que atrelará o destino da nação ao de sua própria família.

A premissa pode até parecer simplória, mas não se engane: os desdobramentos das ações do matador Jerônimo Trovão e de seus filhos Deuteronômio e Levítico são espetaculares e muito bem amarrados – a trama atravessa cerca de uma década da história do Brasil. Os personagens históricos, a tensão política e o clima de revolução industrial são desenvolvidos com maestria e Cirilo foi especialmente inventivo na representação dos aspectos paranormais da obra.

Ao longo da narrativa há a inserção de manchetes fictícias que fornecem um panorama geral dos bastidores e sugam cada vez mais o leitor para esse universo alternativo – sim, trata-se de um recurso comum, mas que funciona muito bem neste livro.

O estilo de Cirilo é agradável e a leitura flui naturalmente. O uso de siglas sem o devido nome por extenso pode gerar confusão, ao menos no princípio – pode ser difícil lembrar que AIB significa Ação Integralista Brasileira. A falta de algumas descrições (como das armas utilizadas pelos personagens) em certos momentos também pode incomodar.

O livro tem uma pegada pulp assumida desde a capa e reserva boas doses de ação e mistério. Mais do que diversão, porém, E de Extermínio propõe reflexões, algo comum nos trabalhos de Cirilo. Populismo, luta de classes, tradição versus modernidade, e outros tópicos polêmicos são abordados em suas 248 páginas, mas sem tom panfletário – o autor deixa que o leitor tire suas próprias conclusões.

Com suas máquinas movidas a diesel, cenários fantásticos, paranormalidade e conspirações, o Brasil recriado por Cirilo é um lugar novo e, ainda assim, perturbadoramente familiar. Mais do que recomendada, esta é uma leitura imperdível.

Assim, eu concedo 5 penas-tinteiro (ou estrelas).

E esta é a humilde opinião de um escriba.

E de Extermínio é a versão mais desenvolvida (e complexa) de Autos do Extermínio – não à toa, o título dado à primeira de quatro partes do livro – noveleta finalista do Prêmio Argos 2012 e que integra a coletânea internacional The Mammoth Book of Dieselpunk.

eBook 7 coisas que aprendiCirilo está entre os escritores que contribuíram para a série “7 coisas que aprendi”. Quer saber mais? Confira aqui a experiência de Cirilo S. Lemos.

Para saber mais:
  1. Cirilo no Facebook: perfil do escritor.
  2. Cirilo no Twitter: perfil do escritor.
  3. Cirilo na Amazon: trabalhos publicados do escritor.

Li e Comento: A Pesquisadora dos Arcanos (Conto)

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Saiba antes de ler: além de romances e livros sobre a arte da escrita, tenho o hábito de ler historietas avulsas por aí. Senti a vontade de comentar sobre esses textos breves, portanto, eu comentarei por aqui sobre contos, novelas e outras leituras mais enxutas. Note-se que este post não é uma resenha, mas um apanhado de considerações breves suscitadas após a leitura do texto.

Em A Pesquisadora dos Arcanos, Miguel Carqueija retorna ao enlouquecedor universo de H. P Lovecraft. Espécie de continuação a Os pesadelos atacam e originalmente publicado na edição 18 da extinta revista Dragão Brasil, o conto narra a busca obstinada de Valquíria por seres sobrenaturais que vivem às sombras da humanidade.

Após uma experiência aterrorizante que lhe revelou a existência de entidades mais antigas que o próprio tempo, a jovem Valquíria visita a cidadezinha de Pedra Torta à caça do raríssimo exemplar de um livro profano. Mal sabe ela que seus passos são acompanhados com muito interesse e que uma simples visita à biblioteca pode lhe custar a sanidade.

Mais consistente que Os pesadelos atacam, também protagonizado por Valquíria, o conto faz uso do recurso de reproduzir trechos do livro (o Necronomicon, é claro), mas aqui estes fazem todo sentido à história contada. Em dado momento, ao justificar a ameaça que paira sobre a protagonista, o texto assume um aspecto acadêmico e se torna excessivamente expositivo, o que prejudica um pouco.

O trunfo da história é o ataque à Valquíria e o modo como esta se defende ao empregar uma espécie de truque científico – ainda que este pareça mais algum tipo de mágica – baseado na Lei da Relatividade de Einstein! Os paradoxos são igualmente interessantes.

Um exemplar do misterioso “Necronomicon”

Este é o terceiro conto de Carqueija ambientado em Pedra Torta, o que cria uma atmosfera macabra em torno da cidadezinha fictícia (o próprio autor já se referiu a ela como a Arkham brasileira). Quem leu o conto Não é humano também experimentará uma agradável sensação de familiaridade com a ambientação.

Os erros de português incomodam um pouco, mas estes são visivelmente falhas de digitação. Trata-se de um bom conto, enfim, mas pouco recomendado para quem nunca leu os contos de H. P. Lovecraft e do próprio Carqueija: as referencias aos Antigos e ao Necronomicon não farão muito sentido, embora não seja difícil supor sua natureza extradimensional.

O conto foi disponibilizado pelo autor em sua coluna, Anexos da Realidade, no portal Entre Textos.

Para saber mais:

  1. Li e Comento: minhas breves considerações sobre contos, novelas e outras narrativas curtas.
  2. Li e Comento: Não é humano (Conto): bom conto de Miguel Carqueija, o primeiro ambientado na cidadezinha de Pedra Torta.
  3. Li e Comento: Vi uma coisa medonha no céu (Conto): neste conto razoável algo sinistro ocorre em Pedra Torta.
  4. Li e Comento: Os Pesadelos Atacam (Conto): primeiro conto de Valquíria, a protagonista de A Pesquisadora dos Arcanos.
  5. Quem é Miguel Carqueija: entrevista com o escritor por Tibor Moricz no site É só outro blogue. Confira no artigo os links para vários trabalhos disponibilizados gratuitamente pelo autor, como a novela A face oculta da galáxia.
  6. A vida e obra de H. P. Lovecraft: site em português que há 8 anos divulga os trabalhos deste cultuado escritor. Descubra o que são os Mitos de Chtulhu.
  7. O universo inominável de H.P. Lovecraft: episódio 321 do NerdCast dedicado inteiramente ao escritor.

Li e Comento: O Cientista Frank (Conto)

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Saiba antes de ler: além de romances e livros sobre a arte da escrita, tenho o hábito de ler historietas avulsas por aí. Senti a vontade de comentar sobre esses textos breves, portanto, eu comentarei por aqui sobre contos, novelas e outras leituras mais enxutas. Note-se que este post não é uma resenha, mas um apanhado de considerações breves suscitadas após a leitura do texto.

Escrito pelo paraibano Bráulio Tavares, O Cientista Frank me marcou menos pela boa história e mais pela reflexão a que me levou: é válido usar uma imagem para complementar o sentido de um texto de ficção ou este deve se fazer entender por si só?

Velho, gordo, baixinho e recém-divorciado, Frank é um cientista cujas descobertas prometem uma grande revolução. Ultimamente, porém, seu único interesse é a mulher maravilhosa que conheceu num site de relacionamentos. Quando ela também demonstra interesse, o cientista não hesita em partir ao seu encontro.

Gosto do trabalho do Bráulio, porém, eu fiquei cismado depois da leitura deste conto. Junto ao texto há uma fotografia que, a princípio, pareceu-me deslocada, mas que no decorrer da narrativa passou a fazer sentido – e até me antecipou o desfecho. É aí que reside minha cisma.

Imaginei se eu teria compreendido a história sem a ajuda da tal fotografia – apesar de haver ali referências sutis que, numa leitura posterior mais cuidadosa, consegui identificar. Encafifado, copiei apenas o texto, enviei-o por e-mail a uma querida amiga e pedi sua opinião. Ela gostou e disse estar ansiosa para descobrir como tudo terminava e qual era o mistério carregado pelo Frank.

Uma imagem vale mais que mil palavras? (Arte: Juan Osborne)

Expliquei que não haveria continuação, que se tratava de um conto, e passei o link da fonte. Só depois de ver a fotografia (que não é essa aí em cima) no post original é que minha amiga entendeu a história. Enviei o texto para mais uma pessoa e o mesmo aconteceu.

DESAFIO

Decidi fazer o teste com os leitores do Escriba Encapuzado. Reproduzo o conto abaixo com a autorização do autor. O texto é exatamente o mesmo publicado no Mundo Fantasmo, blog pessoal onde Bráulio reproduz os textos publicados em sua coluna no Jornal da Paraíba.

Convido-o a ler o conto e tirar suas próprias conclusões; visite o site do escritor para conferir a fotografia à qual me refiro e depois deixe seus comentários ao final deste post. Tenho certeza de que o assunto pode render uma boa discussão. E então? Aceita o desafio?

O Cientista Frank
por Bráulio Tavares

Frank se considerou o sujeito mais azarado do mundo quando sua esposa o largou. Felizmente (pensou ele) tenho meu laboratório de Topologia Quântico-Temporal. As descobertas que fiz nos últimos seis meses, e que estão sendo codificadas por meus assistentes, estão com resultados muito melhores do que os que eu previa, e o relatório está gerando uns três artigos que irão desencadear um novo “Ano Miraculoso” na ciência.

Serões e mais serões se sucediam, e ocorreu que num daqueles intervalos de descontração, que às vezes duravam duas ou três horas, Frank viu-se preenchendo cadastro num saite de relacionamentos. E considerou-se o sujeito mais sortudo do mundo quando, poucos dias depois de se pavonear nos chats, fóruns e assemelhados, descobriu que tinha uma alma gêmea. Uma modelo, muito conhecida e fotografada, mas sofrendo de solidão crônica, tédio e repulsa pelo meio dos paparazzi e do show-business. Queria jogar tudo pra cima, casar, ter uma casa bem tradicional e alegre, ter filhos… “Eu nasci de quina pra lua”, disse, numa frase-feita equivalente, o pobre Frank. “Com 68 anos, gordo, baixinho, vivendo de salário de universidade pública… e uma mulher dessa quer casar comigo”. A essa altura, Frank já conferira que a modelo existia mesmo, e uma rápida intimação ao Google lhe produziu fotos bastante animadoras.

Depois alguns meses de correspondência cada vez mais íntima, ele passou a insistir para que ela o visitasse em Oklahoma, e ela dizendo sempre que estava na ponta aérea entre Paris, Londres, Milão, Zurique e Istambul. Ele terminou de redigir o terceiro “paper” enquanto revisava o segundo e abria a revista que acabava de publicar o primeiro. Logo voltou a se achar o sujeito mais azarado do mundo, porque a prometida turnê dela pela Costa Oeste tinha sido cancelada. Teria sido o encontro dos dois face a face, certamente um jantar juntos, quem sabe mais o quê! Ela disse que ia fotografar uma campanha na Bolívia. Se ele quisesse…

O aeroporto da Bolívia parecia um posto de gasolina, mas quem disse isso foi o executivo da poltrona ao lado; para ele, que nunca saíra de seu Estado, aquilo era um mundo de pulp fiction ou de seriado de TV. O hotel era desconfortável, e na portaria ele recebeu um envelope. O bilhete explicava que a sessão fotográfica tinha sido cancelada. Que ela estava indo para Amsterdam. Mas que por acaso deixara para trás uma de suas malas. Será que ele podia ser um doce, e trazer a mala dela para Amsterdam, onde ele o esperava cheia do amor pra dar? Eu sou o sujeito mais sortudo do mundo, disse ele. Por uma mulher como essa eu faço qualquer coisa.

Para saber mais:

  1. Li e Comento: minhas breves considerações sobre contos, novelas e outras narrativas curtas.
  2. Mundo Fantasmo: blog pessoal do escritor Bráulio Tavares
  3. Bráulio Tavares no Skoob: algumas obras do escritor.
  4. Juan Osborne: site oficial do artista responsável pela incrível arte que ilustra este post.

Li e Comento: O Homúnculo (Conto)

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Saiba antes de ler: além de romances e livros sobre a arte da escrita, tenho o hábito de ler historietas avulsas por aí. Senti a vontade de comentar sobre esses textos breves, portanto, eu comentarei por aqui sobre contos, novelas e outras leituras mais enxutas. Note-se que este post não é uma resenha, mas um apanhado de considerações breves suscitadas após a leitura do texto.

Publicado pela primeira vez na antologia de terror Brinquedos Mortais, da Editora Draco, O Homúnculo é um conto do falecido escritor mineiro Saint-Clair Stockler que mistura ficção científica e terror numa história perturbadora.

Num futuro não tão distante, a evolução da tecnologia de manipulação de genes permite aos seres humanos brincarem de Deus. E nem é preciso ser um cientista para isso. Desembolsando alguns trocados, qualquer cidadão pode adquirir a mais nova sensação da engenharia genética: o homúnculo, um brinquedinho biológico desenvolvido com o único proposito de entreter seus proprietários.

Narrado em primeira pessoa, este conto breve contém um terror sutil: aqui o leitor não teme o monstro que espreita nas sombras, mas aquele que vive em cada um de nós. Mais terrível que esse pensamento é cogitar que quanto mais progredimos como espécie, mais insensíveis e individualistas nos tornamos.

Imersos em mesquinhez e na busca incessante por formas de entretenimento que ofereçam uma fuga da nossa realidade, mal nos damos conta (ou não nos importamos mesmo) que isso se dê à custa da humilhação e do sofrimento alheio. Excelente conto. Não pude evitar imaginar que seria ainda mais aterrador se o protagonista fosse alguém mais jovem.

Dada a qualidade da prosa não é exagero dizer que um verdadeiro talento se perdeu com o falecimento do escritor. A versão Kindle do conto foi disponibilizada de graça pela editora no site da Amazon.

Para saber mais:

  1. Li e Comento: minhas breves considerações sobre contos, novelas e outras narrativas curtas.
  2. Brinquedos Mortais: informações sobre a coletânea lançada pela Editora Draco.
  3. Saint-Clair no Skoob: algumas obras que contam com a participação do escritor.
  4. Saint-Clair Stockler: site que o escritor costumava manter.
  5. Sobre Dias Estranhos: no site de Tibor Moricz, um depoimento de Saint-Clair sobre o livro de contos que publicou e que, atualmente, é bem difícil de encontrar.

Resenha: O Inimigo do Mundo

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Saiba antes de ler: não sou crítico literário nem detentor da verdade absoluta. O texto abaixo relata as impressões que tive após a leitura deste livro e não traz quaisquer revelações quanto ao enredo.

Primeiro romance do gaúcho Leonel Caldela, O Inimigo do Mundo é uma fantasia ambientada em Tormenta, um cenário de campanha de RPG criado em 1999 por Marcelo Cassaro, Rodrigo Saladino, e J. M. Trevisan.

Descoberto pelo último, Caldela foi convidado a transpor o universo dos jogos para a literatura. O resultado é uma obra divertida, mas com potencial desperdiçado.

Em Arton, onde o real e o fantástico coexistem, um assassino sádico e incompreensível está à solta. Em seu encalço estão nove aventureiros com aptidões e motivações próprias. Paralelamente, em planos superiores, poderosas divindades acompanham a tudo com desvelo. Que consequências terríveis uma mera busca por justiça poderá desencadear sobre o mundo?

A premissa é evidenciada nos capítulos iniciais, que revelam a influência dos deuses entre os mortais, a crueldade e a natureza dúbia do assassino, e as particularidades dos nove. O livro é dividido em duas partes – Perseguição e Ruína – no decorrer das quais são apresentados (muitos) detalhes do cenário e (poucos) do enredo.

Há uma preocupação excessiva em destacar as características que diferenciam este mundo de fantasia. Assim, a história é deixada de lado por algum tempo, com os protagonistas sendo conduzidos com o aparente propósito de expor peculiaridades de Arton.

Isso prejudica o interesse por seus esforços, principalmente na primeira parte. Assim, sobressai-se o assassino conhecido por “o Albino”, as divindades – e estes figuram nas cenas mais envolventes (e repulsivas) –, além de alguns coadjuvantes que surgem e somem a todo instante.

A trama envolvendo os deuses também merecia atenção, visto que seus papeis nos eventos limitam-se a discussões, conchavos e uma ou outra bênção velada à missão do grupo. Considerando-se o prólogo e toda a interação que ocorre entre as divindades, espera-se uma participação mais ativa.

Assim, o que resta ao término da leitura das mais de 400 páginas é a dúvida: o que poderiam os deuses ter feito de concreto contra ou a favor do inimigo do mundo quando este sempre esteve além do controle de qualquer um deles? Infelizmente, esta não é a única indagação que permanece na cabeça do leitor.

As expectativas são um joguete nas mãos de Caldela, que as distorce com maestria, o que é uma grata surpresa. Contudo, é frustrante que isso não ocorra no momento mais crucial: a conclusão. Simplória e com buracos, esta é satisfatória e só – toda a segunda parte teve o potencial pouco trabalhado.

Com relação à narrativa, a morosidade incomoda em alguns pontos. A questão é que o autor se mostra prolixo quando um ritmo mais acelerado seria ideal e muito sucinto quando se espera algo mais contemplativo.

A ausência deste equilíbrio fica evidente quando comparadas as duas partes do livro: os eventos se desencadeiam mais rápida e superficialmente nos capítulos finais. A impressão é que estes teriam sido escritos às pressas.

As descrições são bem feitas, mas algumas batalhas são meio confusas – é comum ter a sensação de que algo escapou à atenção. Além disso, há muitas cenas difíceis de visualizar, como aquela onde um personagem investe em carga, vomita e, a seguir, desfere um golpe mortal no inimigo, nesta ordem.

A despeito destes pontos, Caldela demonstra grande talento e familiaridade com as palavras. A abordagem adulta e realista, algo pouco comum ao gênero de fantasia, é uma de suas qualidades. Em diversas passagens, ele não hesita em dar aos protagonistas ares de meros mercenários, provocando uma inesperada antipatia por alguns.

Despertar sensações de desconforto, aliás, é o que escritor faz muito bem, como na cena em que um dos personagens assassina alguém “indefeso” só para ganhar vantagem numa luta. Ele também não hesita em demonstrar o quão frágil é a vida num mundo de espada e feitiçaria onde os heróis podem morrer – mas talvez ele tenha demonstrado este aspecto cedo demais.

Passagens como estas dão sabor a O Inimigo do Mundo, evitando que a história fraca o torne um fracasso. Outro trunfo é a caracterização dos personagens. É lamentável, porém, que os antagonistas e coadjuvantes roubem a cena e sejam tão mais cativantes que os personagens principais.

As divindades do panteão são singulares, belas e complexas. As descrições de seus reinos e do modo como estes são influenciados pelas personalidades de seus regentes demonstram um trabalho inspirado. O Albino é enigmático e perigosamente curioso sobre o mundo a sua volta, intrigante em suas ações e pensamentos indecifráveis.

E por falar em vilão, a presença de um velho conhecido dos fãs de Tormenta não se justifica e surge meio deslocada, quase imposta para arrancar um sorrisinho dos leitores familiarizados com o cenário (ok, eu confesso que sorri). Alguns eventos em torno desta figura, bem como do encontro entre os noves aventureiros e sua caça, também ocorrem sem maiores explicações.

Protagonistas de “O Inimigo do Mundo”

Há outros coadjuvantes muito curiosos que, certamente, mereciam mais espaço no livro – e, dentre estes, um bardo misterioso e uma bruxa assustadora deveriam ter históricos mais detalhados, já que sua participação é tão fundamental.

É estranho que os protagonistas jamais se revelem figuras tão incríveis. Todavia, há quem se destaque entre eles. A sacerdotisa da deusa da vida, Nichaela, tem uma relação conturbada com o restante do grupo graças ao seu repudio a violência, mas se vê obrigada a questionar sua crença.

O mago Rufus é complexo em sua “insignificância” e sofre por suas atitudes (ou sua ausência), reunindo em si vários aspectos negativos do ser humano.

Um personagem que pouco convence, a princípio, mas que ganha contornos mais instigantes é o líder do grupo, o guerreiro Vallen. Contudo, isto acontece tão próximo ao desfecho que é difícil importar-se muito com ele ou com seu relacionamento com Ellisa, que surge como uma aborrecida guerreira com um passado traumático previsível.

Os demais são estereotipados a ponto de sequer merecerem muito destaque na trama. Particularmente, considero Gregor Vahn, o paladino do deus da ressurreição, o mais fraco e desinteressante, e seu “segredo” é trivial.

Caldela fez uma boa estreia com O Inimigo do Mundo. No entanto, considerando-se apenas este livro, referir-se a ele como “Bernard Cornwell brasileiro” me parece exagerado – exceto se a razão para a comparação for o estilo cru, visceral – e, claro, as paredes de escudos.

O maior mérito do autor foi dar vida a um mundo que já existia na cabeça de milhares de fãs do cenário, e ele o fez utilizando-se de cores novas e próprias, sem destruir a idealização de muitos. Isto explica, ainda, a razão pela qual a obra é tão aclamada como uma das melhores fantasias nacionais – não é.

Os outros livros da trilogia.

O Inimigo do Mundo é, no máximo, divertido, e isto graças, principalmente, aos personagens, pois a história é fraca, esburacada e não entrega uma boa conclusão – a segunda edição traz um conto extra que surge como uma tentativa de corrigir esta questão, mas isto deveria ter sido feito na trama, não num remendo.

Cabe dizer que este é o primeiro volume de uma trilogia ambientada em Tormenta; O Crânio e o Corvo e O Terceiro Deus são os próximos livros da série, onde, provavelmente, questões em aberto (e o futuro incerto de certos personagens) devem ser abordadas. Ainda assim, para um livro de 400 páginas, O Inimigo do Mundo promete muito e entrega pouco.

Assim, eu concedo 3 penas-tinteiro (ou estrelas).

E esta é a humilde opinião de um escriba.

Para saber mais:

  1. Leonel Caldela: site oficial do escritor.
  2. Caldela no Twitter: siga-o e veja o que ele tem a dizer.
  3. Caldena no Facebook: perfil do autor.
  4. Caldela no Skoob: veja as obras já publicadas pelo autor e torne-se um fã na rede social de leitores.
  5. Entrevista: Leonel Caldela num bate-papo muito interessante com o escritor Ademir Pascale.
  6. O Inimigo do Mundo: informações sobre o livro no site da Editora Jambô, onde também é possível comprá-lo.
  7. Tormenta RPG: informações sobre a mais nova versão do cenário no qual O Inimigo do Mundo é ambientado.
  8. Fórum de Tormenta: conheça o cenário a fundo nas discussões do fórum oficial no site da Editora Jambô. Alerta de spoiler: há informações sobre este e outros romances ambientados no cenário.
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