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Mulherzinhas – por Aden Camargos

Leitora JovemSou filha de professora, que também era secretária na escola (estadual) em que eu estudava. Minhas tias, professoras – sempre serão apesar de não exercerem mais. Aqui em casa (ops, lá em casa, no passado) muitos livros, havia um armário com quinze volumes da Barsa. Lembro que necessitar dela pela primeira vez foi simplesmente científico. Senti-me aqueles pesquisadores incansáveis, visto em algum filme.

Mesmo antes de saber ler, sempre exerceram fascínio, aquelas páginas grudadinhas. Como pouco ou nenhum desenho poderia ser tão interessante?

Já na quinta série (aquela antiga) nada podia aprontar na escola. Todos os funcionários me conheciam: a menina da Ana. Mas o benefício… Ah, o benefício! Nas férias podia escolher quantos livros eu quisesse na biblioteca. Não bem assim, explico: todos os livros que eu quisesse para minha idade!

Passavam pelo crivo da bibliotecária ditadora. Logo avistado um indevido, descia para explicar: “sua filha não pode”. Sempre tentava o Charles Dickens. Só por ser o “não” tornava-o ainda mais curioso. Junto, na prateleira, havia uma coleção de capa dura, especificamente minhas mãos corriam para um exemplar chamado “Mulherzinhas”. Também era proibido.

Quando liberariam minha leitura?

Por pura indicação adquiri antipatia profunda pelo Padre Zezinho. E Poliana, menina, moça, mulher. Qualquer polianice me irritava. Tornei-me negativa por insistência de leia isso. Só para ser o contrário dessa fofice absurda.

É assim que criam uma menina a gostar de rock. Indicando livros religiosos e fofos.

Aconteceu um belo dia, no final do expediente escolar à tarde, escolhendo um ou outro livro, em análise absolutamente silenciosa, descobri-me sozinha na biblioteca. Olhei a porta. Fechada. Olhei as luzes, apagadas. A ditadora esqueceu meu silêncio! Aproveitei a claridade lá fora, antes, bem antes do meu apavorar! Fui logo na estante proibida. Enfim meu abraço… Mulherzinhas! Devorei em duas horas, talvez cem páginas.

A visão insignificante do entardecer trouxe a sensação da realidade:  vitória com pavor de dormir na biblioteca.

Abri os basculantes e comecei a gritar Seu Juca. Graças por conhecer todos os funcionários, amém, consegui ser libertada.

Escura a rua que descia para minha casa. Não, não havia celulares. Previsível surra me esperava. Não, não era absurdo umas chineladas. Naturalíssimo.

Entre os belos xingos, chinelos e tentativas de explicações, lá dentro cantava a música da vitória. We are the champions também. Sem eu sequer ainda conhecer.

Sim, eu transgredi.

E amava rock. Queria voltar e sentir aquele prazer. Misturado com medo e dor. Talvez já fosse amor.

* Mulherzinhas – Escrito por Louise May Alcott.

Sobre a autora

Aden CamargosAden Camargos é pessoa engolidora de choros, por isso sofre de derrames por extensos quase todas as noites. Os assuntos que ela escreve referem-se ao enorme mundo à volta de seu umbigo. Adora escrever e fazer andanças; sobe morros e picos.

Suspeita que a felicidade seja algo tão difícil de alcançar que deve estar no mais alto ponto do Himalaia. Por isso escala em MG e RJ; vai que existem felicidadezinhas nas montanhas menores? Não suspeita que seja escritora; é uma atrevida mesmo.

Para saber mais:

  1. Universos Paralelos: o relato fantástico de uma viagem ordinária.
  2. Dentro da armadura letra “B”: quanto encanto um desconhecido pode provocar em alguém com alma de poeta?
  3. Aden no Facebook: perfil da cronista na rede social.

Dentro da armadura letra “B” – por Aden Camargos

Então eu te vi. Como quem vê banalidades atuais. A gente corria por aí. Bicicletas observáveis. Lojas, supermercados, o dia a dia que ainda pode matar. Era uma tatuagem a caminhar. Flores surreais, plurais. Olhar para trás pode ser um ataque, pode começar uma guerra, houve notícias que viraram sal.

Na mesma cidade você carregava pesos fechados em caixa. Eu descia leve, faminta. Entre nós, pessoas com suas vidas misteriosas desciam, subiam e se procuravam.

Num instinto deixei um recado, talvez direito. Com restante poético embalado, enrolado, feito um futuro cigarro, com nome perfurado.Eu que nem fumo. Sem querer parecer forte saiu um pouco sagrado. Senti. Um exibicionismo da minha mão que reporta a teclas infinitas. Ah, se eu pudesse fazer você perder a linearidade!

Essa pose por fora. Essa coisa marrenta que desmancha no sol, ao calor jogado. Aposto que vai marcar a facadas por semanas, até se desmanchar no breu do quarto. A noite serve para desvanecer sonhos.

Pronunciei nome. Eu, já esquecida dessa matemática. Como nas brincadeiras dos meninos houve obrigatoriamente um codinome, um apelido. Nos gritos de passarelas, nos carros quando passam. Como chamar? Veio aflição. Poderia guardar as letras que lembraram guerra. As infinitas numerologias feitas por mim, quando veio possibilidade estacionada perto de casa.

Motivos estéreis moveram a hora do seu trabalho. Refeições de medo, vigília, exageros, total submissão.

Além disso, a textura dos cabelos que toquei. Posso descrever até a sensação que não tive, crio uma paisagem negra e brilhante. Farfalhante de quando fala. Um reflexo noturno me encantaria. De lua, de luz fraca, poste, faróis à quase manhã.

Pena, ficamos com a preservação do negro. Dos costumes habituados. Dos vícios incorporados. Das infelicidades não ditas nem esclarecidas. Roupas negras, coisas negras no rosto… Olhar diminuído. Sono. Apreensão. Nada que tenha sido eu a causa. Mal acabei de voltar de mim e vem você, “se” aparecendo assim, sem permissão, sem prévia, sem piedade. Minha porteira é de ventania, não tenho como travá-la. Coisa de interior. De estrada percorrida, poeira e gado no pasto. De repente desce raio.

Não se engane. Sinto muito que não seja preservada a beleza poética do desmatamento de roupas. Seu sorriso não me olha, é um fetiche de obrigação. Uma vontade de mudar que não chega a caminhar, um aborto até. Claro que vi, até sabia do fim, só não pude evitar.

Descarregue o que tinha. Toque lindamente. Já desci, mesmo querendo ficar e ver a tortura permanecer. Não era hora, máquina do tempo perdido. Chovia. Para evitar, morri. Não sei bem se eu chorava, afobava ou dormia. Foi quando cheguei de novo em mim. Foi bem aqui. Me esfolei na cerca, tinha luz ligada, serviu de nada. Nem placas, nem trovões ou diversas claridades. Aproveite suas razões. Eu, a encantada.

Sobre a autora

Aden CamargosAden Camargos é pessoa engolidora de choros, por isso sofre de derrames por extensos quase todas as noites. Os assuntos que ela escreve referem-se ao enorme mundo à volta de seu umbigo. Adora escrever e fazer andanças; sobe morros e picos.

Suspeita que a felicidade seja algo tão difícil de alcançar que deve estar no mais alto ponto do Himalaia. Por isso escala em MG e RJ; vai que existem felicidadezinhas nas montanhas menores? Não suspeita que seja escritora; é uma atrevida mesmo.

Para saber mais:

  1. Universos Paralelos: confira mais esta criativa crônica de Aden Camargos.
  2. Aden no Facebook: perfil da cronista na rede social.

Quatro Fantasmas

4 SombrasDirijo. Ao lado, pela janela entreaberta, o mundo, nítido. À frente, trânsito. Tarde da noite, e trânsito. As horas do dia pesam; corpo e mente clamando por piedade. Ignoro-os. Tento ficar atento ao meu redor, preciso encontrar aquele algo, o click, o insight. Nada.

O estômago urra – quando foi a última vez que comi? Os faróis são apagados pelo esplendor da praça iluminada. Luzes de Natal… Natal! Jesus, família, significados deturpados, o verdadeiro espírito da festa. Nada.

Bá, não me vem nada que já não tenham alardeado por aí; exceto, talvez, que a figura do velhinho bonachão de roupinha e sacolão vermelhos é uma criação da Coca Cola – disso eu não sabia. Carros e pedestres, pedestres e carros. E a Musa? Essa está de férias já há algum tempo, talvez se preparando para celebrar o Natal. Que tal música? Essa sempre inspira algo. Ah, rádio quebrado, esqueci. Celular. Podcast de literatura. Quem sabe?

Paro de prestar atenção em tudo. Ao som do burburinho, sou visitado por fantasmas, mortos e vivos. Eis Nelson Rodrigues, repórter, cronista e conselheiro de relacionamentos, tudo no mesmo dia; ao seu lado, Bráulio Tavares, com caderno e caneta em mãos, escrevendo mais um de seus inúmeros textos para sua coluna diária. Diária! Os dois caminham com sorriso zombeteiro pela calçada ao meu lado; vão na direção de um clássico Plymouth Fury dirigido por Stephen King, que os aguarda com um monte de folhas, ansioso para lhes mostrar mais duas mil palavras escritas hoje.

Antes que o carro dispare por uma rua livre do trânsito – nojentos! – e suas risadas se dissipem ao longe, os ouço comentar sobre uma visita a Rioky Inoue: o recordista mundial lhes contará de novo como passou, em algum momento da década de 90, a escrever três livros por dia. Obrigo-me a pensar em Joyce e na anedota onde ele revela a um amigo – ou a esposa, depende da versão –, ter tido um dia produtivo após escrever três frases (ou quatro, vai saber).

Mais adiante, estrada livre, disparo no limite da via, pensando. Penso no livro de contos que se arrasta há dois anos, nos cursos que pretendo fazer e que, espero, tornem-me um escritor melhor. Penso que talvez esteja perdendo tempo ou enganando-me sobre ter algum talento com a palavra.

Penso, penso, penso. Já me disseram que penso demais, que eu deveria sair da minha cabeça com mais frequência e ver o mundo lá fora. E eles têm razão, mas hoje o mundo não me oferece nada além de enfado e isso já tenho de sobra, obrigado. Onde está aquele universo em movimento e sua promessa de inspiração, de histórias a contar? Dormindo? Volto pra dentro, mesmo sabendo que ali só há angústia, dúvida, birra até – como é possível querer mesmo viver de tanta frustração? Bá, melhor é desligar.

Casa. Janta, banho, sofá, sono. Dentes escovados, cama feita, cabeça no travesseiro. Luzes apagadas. Click. Luzes acesas. Meio inconformado, pego o caderno e começo a rabiscar este texto. Quem sabe o amanhã não vem com o insight, a revelação – quiçá a Musa me ligue ou mande um cartão postal? Mas, caso isso não aconteça… Rabisco, revejo, penso, repenso. Melhor garantir algo para o encontro de amanhã. Suspiro alto, chateado e irritado por cair no clichê de mais uma crônica sobre a falta de assunto.

Este texto foi escrito durante a oficina Caro Leitor: A Cronista e as Palavras, ministrada pela escritora Ana Elisa Ribeiro em Belo Horizonte em novembro de 2014.

Universos Paralelos – por Aden Camargos

Ônibus na EstradaFoi um dia de atravessar portais. Para a estranheza de quem recebeu a chave oca do teletransporte, é de se esperar a surpresa do impossível. Ao chegar ao ponto de ônibus – local chamado de “na ponte”, que não é ponte – avistei um rico. Quiçá milionário. O que ele fazia na ponte? Tem helicóptero! Por aí, já pressenti: não existia aquele momento. Era ilusão o portal, a abertura, a chave. Minha vida.

Meus poderes xamânicos estavam imundos de pântanos interiores e bem soube: vai fechar! Não se manteria aberto. Mas eis que o desacelerador de partículas comprado usado do CERS chegou imponente.

E como tudo em Itaúna, seguimos sempre parando. Ah, meu Deus! O rico entrou! Fico apreensiva nessas viagens. Suspeito que há uma máfia de entrega de pães de queijo sem notas fiscais em Mateus Leme. Não há paciência nem playlist que suporte tantas desacelerações, entradas e saídas. Juro que descem as mesmas pessoas que sobem. Acabaram de descer e já vem de novo? Claro, são os pães de queijo, arrependeram-se e querem mais!

Não era pela quitanda, mas um homem entrou gritando. Sua mulher também. Foram se desnudando da vida de casa e do quarto. Ele era um chato, devia dinheiro até para as palavras feias. Ela estava “cheia de pedra”, uma louca. Sim, agora entendi o que era louca de pedra. Não era amor. Não era ódio… Ele pagou ambas as passagens. Para a cobradora pagou em dinheiro. Mas sobre a dívida com palavras, insistiu em nos demonstrar planilhas com colunas de mágoas. Chamou-a pelo nome: Lixo.

Coloquei o All Star de Cássia nos ouvidos. Sim, algum silêncio musical para que eu não me envolvesse. Curiosidade entre azul e preto? Tantos segredos voando de sacolinhas… Desliguei.

Barreira da polícia sempre foi o lugar de passar despistado, colocar os cintos. Mas foi onde ele tirou em sonoro “pare”! “Vou deixar essa louca aí”. Pronto. Chave oca errada! Vamos atrasar no B.O. Todos testemunhas! Claro, era o portal se tremendo todo, mal se equilibrando nas energias rosa do amor aos livros. Sei, sei, não vai aguentar.

A doida já não manifestava sobre dívidas e chatices. Sentiu medo, fome, solidão. Seus olhos gritaram e choraram pedras. Senti doer. Eram cálculos auriculares. Expeli-los dói muito. Soluçava. Ele mandou seguir. Sentou três banco mais perto. Se não tivesse exibido tanta contabilidade, talvez a abraçasse. Apenas abriu seu baú de moedas vis pela janela, se endividando até o pescoço, sufocado de vento.

Ufa! A chave oca na mão, numerada 128634 foi guardada. Funcionou, já que de Contagem em diante já era outra dimensão.

Foi só turbulência… Coisas de caminhos tortos. Desci em BH. As interceptações na Afonso Pena ainda me fizeram procurar pela magia. “Per benedictionem clavis beneficus”! Me deixem passar! Ave! Aula de novos poderes, novos feitiços, novas poções. De beber às talagadas. Aconteceu! Nesta taça… Esta que desenho aqui, agora, em rabiscos fonéticos.

Sobre a autora

Aden CamargosAden Camargos é pessoa engolidora de choros, por isso sofre de derrames por extensos quase todas as noites. Os assuntos que ela escreve referem-se ao enorme mundo à volta de seu umbigo. Adora escrever e fazer andanças; sobe morros e picos.

Suspeita que a felicidade seja algo tão difícil de alcançar que deve estar no mais alto ponto do Himalaia. Por isso escala em MG e RJ; vai que existem felicidadezinhas nas montanhas menores? Não suspeita que seja escritora; é uma atrevida mesmo.

Para saber mais:

  1. Aden no Facebook: perfil da cronista na rede social.

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