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Lero-lero: “A Morte do Demônio” nem é tão apavorante…

Lero-lero

Lero-lero é uma coluna regular cedida ao meu parceiro de letras Diogo Ruan Orta. Gente finíssima e com carta branca para escrever o que desejar, ele compartilhará por aqui crônicas, desabafos, contos e o que mais houver dentro daquele caos enevoado que ele chama de mente. Espero que o leitor se divirta tanto quanto eu lendo e desvendando o quanto dos escritos do Diogo é fato e o quanto é ficção.

Atenção: este artigo contém revelações do enredo (spoilers) de filmes da franquia A Morte do Demônio.

Encontrei um tempinho para assistir a A Morte do Demônio, refilmagem do clássico cult da década de 80. Nunca ouviu falar? Ou você é muito mirim ou muito alienígena ou apenas não é tão chegado assim em filmes – de qualquer forma, o texto de hoje não vai te interessar, então é melhor ir fazer outra coisa; vai lá, de boa, sem estresse.

Ash no original "A Morte do Demônio"

“Como assim eu não estou no remake?”

Ainda aqui? Você curte a canastrice de Bruce Campbell? E os trabalhos de Sam Raimi? Você também acha os filmes originais do Aranha melhores do que essa nova palhaçada caça-níqueis da Sony? Ok, fugi do assunto. De qualquer modo, é provável que, como eu, você não tenha gostado muito deste remake. Em boa medida, o filme cumpre o que promete: terror e violência a rodo. Mas isso não bastou para este fã aqui.

O começo tem aquela pegada de mistério e terror que nos faz esperar uma experiência foda que, infelizmente, nunca ocorre. É um filme assustador? Pode crer. Só que não é aquele medo que sentimos ao ver os demônios zoando com Ash e sua turma no primeiro filme, antes da franquia degringolar para o gênero terrir.

Este A Morte do Demônio está mais para Jogos Mortais do que para Arrasta-me para o Inferno, do próprio Raimi – um filme muito superior, diga-se. Não há aqui o equilíbrio entre o gore e a fragilidade (e incapacidade) humana diante do sobrenatural que eu sentia no original. Pelo menos não excluíram o livro maldito, a perversão, as possessões, a mão infectada, a serra elétrica, o babaca que brinca com o que não deve, o demônio indefinido caçando pela floresta, o herói cansado de fugir juntando suas ferramentas e partindo pra guerra.

Carro de Ash aparece em cena.

Não, amiguinhos, este não é o carro que vocês estão pensando… não exatamente.

Dizem que o filme é uma continuação só porque, logo no começo, há uma cena que mostra o carro usado por Ash e seus amigos. Papo furado. A razão é simples: o segundo filme da série acaba com um vórtice temporal sugando carro, cabana, livro e Ash de volta no tempo, lembra? Desconsiderar as continuações clássicas é um sacrilégio.

Prefiro ver este A Morte do Demônio como um filme diferente, um remake meia boca. Só assim para eu engolir os exorcismos (no original, uma vez possuído, já era, e aí estava o verdadeiro terror) e a cura mágica dos ferimentos de Mia depois da possessão (a língua dela não deveria estar bifurcada?); ah, e o nome do livro (sei que no primeiro filme ele também é chamado Naturom Demonto, mas sempre achei Necronomicon Ex Mortis melhor, diabos!).

Livro Naturom Demonto

Sem dúvida é mais prático escrever um aviso no livro maldito do que apenas enterrá-lo bem fundo.

E ainda tem uma enfermeira que acha normal alguém em choque vomitar uma quantidade absurda de sangue; e o tal David, que continua de pé depois de ter peito e olhos perfurados por uma seringa, mão rasgada (e cabeça amassada três vezes) por aquele cacete de pé-de-cabra, e braços perfurados por pregos – ele é parente do Wolverine?!

Pra que aquela balela de coletar cinco almas para trazer à vida o demônio malvadão? Por que esse tal demônio é um cosplay da Samara quando a própria Mia possuída é mais assustadora? Por que o demônio ressurreto é tão burro e incompetente? Por que a garotinha possuída e o livro estavam na cabana logo no inicio do filme, se o lugar pertencia aos pais de Mia? E por que, POR QUE os caipiras não enterraram a porra do livro?

Agora o que matou o filme pra mim foi o final tosco, covarde e desleal à franquia, que nunca acaba com o protagonista vitorioso. Talvez se tivessem incluído a tal cena onde uma Mia ainda possuída é abordada na estrada por um caminhoneiro de rosto familiar eu tivesse ficado mais satisfeito.

Mia dando cabo do demônio com estilo.

Olha aí o demônio malvadão sendo morto por uma motosserra!

Sobre o autor

Diogo Ruan OrtaDiogo Ruan Orta é um leitor fanático. Detesta redes sociais e vive em rigorosa dieta de informação desde que concluiu que há pouquíssima vida inteligente no mundo virtual. Antissocial, acredita ter meia dúzia de amigos verdadeiros – destes, dois vivem sob o mesmo teto que ele. Não tem pretensões de se tornar escritor (no Brasil? Que piada!), mas sente que escrever é seu carma e uma forma saudável de dar vazão aos seus instintos psicopatas.

Lero-lero: Só mais uma noite perdida

Lero-lero

Lero-lero é uma coluna regular cedida ao meu parceiro de letras Diogo Ruan Orta. Gente finíssima e com carta branca para escrever o que desejar, ele compartilhará por aqui crônicas, desabafos, contos e o que mais houver dentro daquele caos enevoado que ele chama de mente. Espero que o leitor se divirta tanto quanto eu lendo e desvendando o quanto dos escritos do Diogo é fato e o quanto é ficção.

No balcão do bar, Muhammad Ali me mediu com olhos duros. Um instante depois, ele bufou, cheio de marra. Devia achar que o franzino aqui não era ameaça. Nem liguei. Só queria saber das curvas da candidata a Globeleza ao lado dele. Era uma noite fria, mas a morena estava à vontade no vestido – ou seria uma blusa? Até o Papa babaria diante da mulher: cachos escuros caídos sobre ombros nus, pelinhos amarelos pelas coxas adentro, perfume alucinante fluindo da pele lustrosa.

Um toró de braço espremeu a cinturinha dela e dedos tamborilaram no alto das nádegas. O brutamonte se esbaldava. A inveja doeu no estomago (ou seria fome?). Daí eu escutei aquelas vozes e quase explodi de ri. É, meu povo, que outros estragos essas bombas andaram fazendo? Que Ali soasse como uma soprano não incomodava a Globeleza – na verdade, de tão rouca, ela agora mais lembrava uma panicat.

Eu quis me sentar longe do casal de matracas, mas o lugar ainda estava lotado. Já que ia esperar mais, por que não molhar a garganta? Do lado de lá do balcão, uma branquela beiçuda lavava algo na pia e me ignorava. Dirigi o apelo sedento a um rapaz de avental que vi correndo até o freezer. Já vou, me respondeu com a cabeça. Equilibrando seis latas de Skol, ele voltou a toda pela portinhola perto do caixa e apanhou uma cadernetinha preta. Antes de sumir lá nos fundos do bar, ainda assentiu para outras três mesas.

Olho EsmeraldaTremenda putaria colocar três pessoas para atender, o quê, três dúzias de pessoas? Pior, em uma sexta-feira! Ou seriam apenas duas, já que o caixa parecia abandonado? Que sacanagem despencar lá da capital pra implorar bebida no tal novo point do qual todo mundo tem falado. Cidade pequena tem dessas merdas. Ao invés de aproveitar o sucesso pra investir na melhoria do lugar, o que o dono faz? O muquirana corta custos, aumenta preços. Quem não gostar que fique em casa ou vá à quermesse da igreja.

Foda-se. Passo bem sem esse lugar, obrigado. Talvez ainda dê pra encontrar a turma e ver as pervas dançando alucinadas. Vai querer o quê, amigo?, era o equilibrista frenético ao resgate, mais veloz do que o Papa-Léguas. Opa-opa, gorjeta indo embora. Bip-bip. Vai querer o quê, amigo? Eu já ia dispensá-lo com uma torra, mas tive uma visão que me fez desistir. Uma Coca-Cola; gelo e limão, pedi – a garganta queria álcool, mas eu tinha uma longa estrada de volta pra pegar. Indiquei um lugar perto da fachada e, sem dar mais atenção ao rapaz, fui atraído por aquelas joias.

O pedido não demorou – ou talvez tenha demorado, não sei bem. Mergulhado no mar verde daqueles olhos eu tinha perdido toda a noção do tempo. A garota que eu contemplava perdia feio para a Globeleza madura e sinuosa de Ali; tinha cabelos chamativos, mas tão dourados e lisos que não poderiam ser naturais; a maquiagem de gueixa era uma máscara. Ela não era feia, só estava pouco abaixo dos meus padrões. Ainda assim, não resisti às esmeraldas que faiscavam em seu rosto.

Meu fascínio incontido foi notado com satisfação. Sei reconhecer as sutilezas femininas nos gestos, olhares, respiração; tive mulheres o bastante para isso. Ela gostou de algo em mim, o que me surpreendeu. Uma maré péssima tem me carregado nos últimos tempos; eu chego a duvidar de que terei outra mulher tão cedo. Sim, ainda, pois naquela noite hesitei. Por que não tomei uma atitude? Por que me contentei em admirar aqueles olhos à distância até que eles saíssem da minha vida da mesma forma que entraram? Não faço ideia.

Enquanto escrevo sobre aquela noite perdida – apenas mais uma entre tantas em minha vida – tento encontrar respostas convincentes. Mas de duas coisas tenho certeza: lamento minha hesitação (desdém? covardia?) e torço por outra chance com a garota de olhos sobrenaturais. Talvez assim eles parem de me atormentar todas as noites em meus sonhos.

Sobre o autor

Diogo Ruan OrtaDiogo Ruan Orta é um leitor fanático. Detesta redes sociais e vive em rigorosa dieta de informação desde que concluiu que há pouquíssima vida inteligente no mundo virtual. Antissocial, acredita ter meia dúzia de amigos verdadeiros – destes, dois vivem sob o mesmo teto que ele. Não tem pretensões de se tornar escritor (no Brasil? Que piada!), mas sente que escrever é seu carma e uma forma saudável de dar vazão aos seus instintos psicopatas.

Lero-lero: Uma banana pra sociedade!

Lero-lero

Lero-lero é uma coluna regular cedida ao meu parceiro de letras Diogo Ruan Orta. Gente finíssima e com carta branca para escrever o que desejar, ele compartilhará por aqui crônicas, desabafos, contos e o que mais houver dentro daquele caos enevoado que ele chama de mente. Espero que o leitor se divirta tanto quanto eu lendo e desvendando o quanto dos escritos do Diogo é fato e o quanto é ficção.

O mundo me enoja. Ou será o ser humano? Sim, faz mais sentido: a humanidade me enoja. O Todo-Poderoso (Deus, não Morgan Freeman) cantou essa pedra milênios atrás. Imagino se Ele não estará cogitando um novo dilúvio para breve – sujeira para lavar tem de sobra. Aproveite a estação de chuvas e o descaso de nossos governantes eleitos, ó Divino, e afunde a todos nós nas águas lamacentas de nossas vergonhas.

O racismo é a bola da vez. TV, rádio, sites, redes sociais, todos alardeiam o caso: Villarreal x Barcelona, segundo tempo; o lateral-direito Daniel Alves interrompe a cobrança de escanteio para comer uma banana atirada em campo. “Banana evita câimbra”. Espirituoso. Banido pelo resto da vida, o torcedor babaca assistirá aos jogos do Villarreal pela TV. Que terrível punição.

A comoção é geral: indignação, revolta, solidariedade. É hora de retomar o debate sobre as diferenças raciais, enfrentar o preconceito, gritar, ir para a rua. Parece pouco, não? Isso já foi feito antes, pouca coisa mudou. Talvez o melhor seja bradar em 140 caracteres, publicar selfies nos paraísos de felicidade e engajamento artificiais. E por que não ir além? Esmagar o racismo com aquela hashtag esperta – #somosTodosMacacos soa genial, não soa? –, com o apoio de celebridades que convivem desde sempre com o preconceito.

Banana contra o Preconceito.

Dando uma banana pro preconceito.

Que o apresentador solidário tire algum lucro disso não importa. O que vale é a mensagem, é consertar o que é errado, é o apoio e o engajamento para destruir esse mal do coração dos homens. Sabe de nada, inocente. A questão é fazer um bom negócio, é vender uma imagem. Um pouco de fumaça, espelhos (e aconselhamento publicitário), e presto!, o craque que nunca se admitiu negro tem um surto de cidadania e corre para o front em defesa do companheiro.

Se a jogada é boa, por que há tão poucas fotos (ainda não vi nenhuma, pra ser honesto) de negros posando com bananas? Será que não entenderam essa brilhante ação de marketing? Seria uma pena, afinal, tanta gente do bem se ergueu em defesa de seus direitos. Ainda assim, o valor da iniciativa é bem claro, não é? Quando as chamas do incêndio cívico se apagarem, seria interessante promover um debate igualmente valioso. Até sugiro uma hashtag para a campanha: #somosTodosOportunistas. Não é genial?

Sobre o autor

Diogo Ruan OrtaDiogo Ruan Orta é um leitor fanático. Detesta redes sociais e vive em rigorosa dieta de informação desde que concluiu que há pouquíssima vida inteligente no mundo virtual. Antissocial, acredita ter meia dúzia de amigos verdadeiros – destes, dois vivem sob o mesmo teto que ele. Não tem pretensões de se tornar escritor (no Brasil? Que piada!), mas sente que escrever é seu carma e uma forma saudável de dar vazão aos seus instintos psicopatas.

NaNoWriMo: as críticas e o valor do desafio

Escrever um livro de 50 mil palavras em 30 dias é uma proposta audaz. É natural, portanto, que o National Novel Writing Month (NaNoWriMo) seja visto com desconfiança ou até mesmo descaso, principalmente por escritores e demais profissionais do mercado editorial.

As principais causas para a aversão dos detratores do NaNoWriMo são a má interpretação da essência do evento e a crença preconceituosa de que este não produz boas obras. Ainda que a tais críticas não sejam injustificadas, é inegável que o evento tem sim seus méritos.

Críticas recorrentes

O NaNoWriMo não é sobre qualidade, mas quantidade; é uma competição, nada mais.

Essa visão equivocada é reforçada não só por muitos participantes como pelo próprio site do evento. Embora encorajem as revisões, os organizadores do NaNoWriMo não alardeiam todo o trabalho que aguarda os escritores após o fim de novembro.

Por isso, é comum ver trabalhos disponibilizados na íntegra na Internet poucos dias depois de concluídos, sem que tenham passado sequer por uma fundamental correção ortográfica e gramatical.

O objetivo não é produzir um livro de 50 mil palavras para ser exibido como um troféu nem para abarrotar a caixa postal de editoras na esperança de ser publicado. O escritor consciente compreende isso, aceita que é difícil escrever algo de qualidade em 30 dias e dedica os dias, meses, anos seguintes revisando e aprimorando seu trabalho.

“Eu odeio o NaNoWriMo.”

O NaNoWriMo não encoraja a boa escrita e muito menos sua melhor prática.

Ninguém define melhor seu processo de trabalho do que o próprio escritor. Não existe um só meio de se produzir um romance. Alguns passam anos sobre um original, outros concluem em meses, dias ou até mesmo horas.

Sir Arthur Conan Doyle escreveu o livro de estreia do detetive Sherlock Holmes, Um Estudo em Vermelho, em 3 semanas. John Boyne escreveu O Menino do Pijama Listrado em apenas dois dias e meio. O brasileiro Ryoki Inoue venceu o desafio de um americano ao escrever um livro em algumas horas.

O prazo curtíssimo do NaNoWriMo é apontado como o vilão da boa escrita: pressionado pela meta “absurda”, o participante poderia se valer de artifícios como abusar do uso de adjetivos e advérbios, por exemplo. Desnecessário dizer que isso é trapaça, não é? Tais atitudes apenas reforçam, erroneamente, o clima de competição do evento.

O escritor mais produtivo do mundo segundo o Livro dos Recordes.

No NaNoWriMo a pressão não forma diamantes, apenas pó.

A criação literária é caracterizada pela moldagem parcimoniosa da obra: é preciso trabalhar as ideias na mente por um tempo, deixá-las amadurecer e só então transpô-las para o papel. Essa é uma noção comum entre escritores e com a qual concordo. Mas o NaNoWriMo não vai contra isso.

As “regras” do evento ditam que trabalhos anteriores não podem ser aproveitados, isto é, o livro deve ser escrito do zero. Isso não significa, porém, que o participante seja proibido de dedicar-se nos meses anteriores à maturação das ideias do romance que pretende escrever.

Também não impede que, nos meses seguintes, o texto seja revisado e aprimorado. A grande maioria dos livros produzidos durante o evento não está pronta para ser mostrada ao mundo. Um Estudo em Vermelho e O Menino do Pijama Listrado com certeza não foram publicados sem uma criteriosa revisão.

Todo grande romance passa por rigorosas etapas de revisão.

O NaNoWriMO não incentiva a mentalidade certa para ser criativo.

Atentar para o total diário de palavras pode minar a criatividade do participante e tirar o seu foco da história, que é o que realmente importa. Sim, é bem possível. Acontece que novembro não é um mês para ser criativo, mas sim produtivo.

Certa vez, escutei um escritor descrever seu processo de trabalho. Havia uma longa fase de criação, dedicada apenas à maturação de ideias, pesquisas, mapas mentais. A fase seguinte era a de produção, na qual ele escrevia a história efetivamente, utilizando como referência todo o material obtido na fase de criação.

Em outras palavras, somente quando este escritor sentia ter esgotado todas as possibilidades de criação que lhe agradavam é que ele começava a escrever, mecanicamente, o livro de fato.

Alguns escritores separam a fase de criação da fase de produção.

O NaNoWriMo esgota a mente de seus participantes a troco de nada.

Sim, o evento é uma maratona verdadeiramente extenuante. Haverá momentos em que o participante se sentirá frustrado, desesperado, tentado a desistir. Isso acontecerá ainda com maior frequência se tiver de conciliá-lo com trabalho ou estudos.

Para os vitoriosos, o fim de novembro poderia reservar uma aversão passageira pela escrita, não fosse pela satisfação de concluir a primeira versão de um romance. Finalmente aquela história que antes existia apenas em na mente está ali, diante dos olhos, palpável. Está pronta, é impecável? Claro que não. Mas ela existe!

Aqueles que não conseguiram atingir as metas do NaNoWriMo não têm razão para se abater e devem aproveitar a experiência para refletir, aprender e evoluir como escritores.

Um provável vencedor do NaNoWriMo.

A natureza do NaNoWriMo

Escrever, escrever, escrever. Essa máxima repetida pela maioria dos escritores se aplica bem ao evento. Quanto mais se escreve, mais se aprende a escrever. Quando o participante voltar ao texto original algum tempo depois, aprenderá ainda mais ao reescrever aquele rascunho tosco.

NaNoWriMo é isso. É o empurrão para tirar o escritor da inércia, é a pressão na forma de prazo, é a adrenalina do desafio, é o incentivo para se escrever a primeira versão daquela história que há muito tempo só existe fragmentada em pensamentos.

Dizer que o evento não produz bons livros é bobagem. Se fosse verdade, livros como O Circo da Noite, de Erin Morgenstern, e Água para Elefantes, de Sara Gruen, jamais teriam sido publicados nem se tornado sucesso de vendas.

Quem disse que o NaNoWriMo não produz bons livros?

Perdoem-me os detratores, mas o NaNoWriMo tem sim seu valor. Não fosse assim, o evento não contaria com o apoio de escritores do calibre de James Patterson, Neil Gaiman, Garth Nix, Philip Pullman, John Green e Meg Cabot, não é mesmo?

Para saber mais:

  1. NaNoWriMo: 30 dias para escrever um livro – saiba mais sobre o evento no primeiro artigo da série que estou escrevendo.
  2. National Novel Writing Month PEP Talks: palavras de incentivo de escritores renomados na página oficial do evento (em inglês).
  3. 5 livros publicados que nasceram no NaNoWriMo: um TOP 5 no blog For books’ sake (em inglês).
  4. 13 verdades terríveis sobre o NaNoWriMo: o outro lado da moeda por um participante do evento (em inglês).
  5. Como escrever um livro em 30 dias: um guia elaborado pelo jornal The Guardian (em inglês).

Resenha: O Caçador de Andróides

PenaPenaPena

Saiba antes de ler: não sou crítico literário nem detentor da verdade absoluta. O texto abaixo relata as impressões que tive após a leitura deste livro e não traz quaisquer revelações quanto ao enredo.

Escrito pelo americano Philip K. Dick, O Caçador de Androides* é uma ficção científica indicada ao Prêmio Nebula de 1968, ano de sua publicação. Foi editado no Brasil somente em 1983, um ano após o lançamento de Blade Runner: O Caçador de Androides, adaptação cinematográfica dirigida por Ridley Scott e estrelada por Harrison Ford. A despeito do lapso temporal, a obra se mantém atual nas reflexões que propõe, mas pode não agradar aos fãs do filme.

O cenário é a Terra do futuro**, arruinada por uma guerra sobre a qual restam pouquíssimos registros. Suas consequências, porém, estão presentes no cotidiano: a radioatividade impregna o planeta; flora e fauna praticamente extintas dão lugar a réplicas artificiais. Os incapazes de se refugiar nas colônias marcianas estão fadados à sobrevivência num ambiente miserável, inóspito e repudiado.

Insuflada pela necessidade e pela monstruosa engenhosidade humana, a tecnologia evoluiu e atingiu o zênite com o advento dos androides orgânicos. Feitos à imagem e semelhança do ser humano, eles somente podem ser distinguidos por intermédio de testes especiais de empatia, faculdade que mal podem emular; isto representa uma ameaça, pois os androides, tidos como mão-de-obra escrava, acabam por revoltar-se contra sua condição.

Nesta distopia tétrica vive Rick Deckard, caçador de recompensas de meia-idade a serviço da polícia que é convocado para localizar e “aposentar” androides rebeldes fugitivos de Marte. Vivendo uma crise matrimonial e de consciência, Deckard busca conforto na aquisição de uma ovelha legítima, um artigo de luxo. Envolvido na caçada contra sua vontade está J.R. Isidore, um “especial” cuja vida é a própria representação da realidade sinistra desta sociedade pós-apocalíptica.

Ainda que livro e filme se fundamentem na mesma premissa, há diferenças consideráveis, a começar pela caracterização do ambiente. A película apresenta uma Terra superpopulosa, com arranha-céus decadentes, carros voadores, e letreiros luminosos bombardeando propagandas a todo instante. A combinação de sombra e luz traduz um clima decante e sujo, mas ao mesmo tempo fascinante e brilhante.

Cena do Filme. Superpopulação?

No romance, impera a sensação de desolação. O mundo é um lugar escuro, silencioso, vazio; a visão de Dick é soturna, desesperadora, e sobressai-se à de Scott. Este aspecto é nítido nas cenas protagonizadas pelo marginalizado Isidore, responsável por expor o horror e a penúria de sua subsistência ao leitor.

Duas particularidades instigantes do cenário que foram ignoradas no cinema se destacam: a existência de uma tecnorreligião – que, infelizmente, surge envolta numa aura de confusão, o que talvez justifique não ter sido abordada no filme – e a possibilidade de manipulação das emoções humanas via estímulos elétricos.

O autor expõe as particularidades de sua visão pessimista do futuro com maestria, mas peca ao conduzir a ação em torno da perseguição aos androides. Exceto por dois pontos específicos da trama, é difícil ao leitor preocupar-se com o destino do protagonista – apesar do texto frisar a capacidade superior dos androides, Deckard nunca parece estar verdadeiramente ameaçado por eles.

Fãs da obra de Scott ficarão incomodados também com a frágil descrição do combate final contra o androide Roy, que é descrito como o mais poderoso do grupo caçado: o confronto aqui é patético se comparado a da versão cinematográfica, repleta de energia e poesia.

Contudo, Dick consegue acertar em cheio no tom em alguns pontos, como quando Deckard é confrontado com uma possibilidade aterradora que o leva a questionar a si mesmo, num dos momentos mais bem trabalhados do enredo – este deve ter inspirado a eterna questão acerca da natureza do protagonista no filme, dúvida esta que logo é sanada no livro.

O desfecho deixa a desejar: lento e inesperado, representa um verdadeiro anticlímax, ainda que induza a muitas reflexões. Toda a história ocorre num único dia da vida do protagonista, o que é curioso. Infelizmente, isto reforça a sensação de que Deckard jamais esteve em perigo, tornando-o excessivamente habilidoso e capaz em seu trabalho – e também inverossímil.

O valor da obra de Dick está justamente na proposição de questões filosóficas e sua leitura proporciona um exercício de reflexão, em vista da complexidade dos temas. Quem buscar aqui a grandiosidade cinematográfica do filme de Scott irá se decepcionar. Não é, em absoluto, uma leitura fácil. Pelo contrário, O Caçador de Androides é aquele tipo de livro que requer releituras com um olhar atento, maduro, para lhe decifrar os mistérios. Concedo-lhe, assim, 3 penas-tinteiro (estrelas).

E esta é a humilde opinião de um escriba.

Notas:

* Tradução aberrante do título original, Do Androids Dream With Eletric Sheep

** Na edição original a história era ambientada no ano de 1992, mas esta data foi alterada em edições posteriores para 2021 pelas filhas do autor, detentoras de seu espólio. A intenção era evitar que o livro parecesse datado ou ultrapassado.

Para saber mais:

  1. Sobre o autor: onde escrevo um pouco sobre a curiosa figura de Philip K. Dick.
  2. Obras de Philip K. Dick reeditadas no Brasil: artigo no site do Estadão sobre a reedição de várias obras do escritor pela Editora Aleph.
  3. Obras no site da Editora Aleph: confira os cinco livros de Dick já reeditados pela editora, que promete publicar outros trabalhos do escritor.
  4. Análise do livro O Caçador de Andróides: interessante dissertação de mestrado por Gustavo Piacentini.
  5. Blade Runner – O Caçador de Androides – 30 Anos: artigo no site Omelete relembra o cult de Ridley Scott.
  6. Resenha Crítica do Filme: publicada por Renato Alves no portal cultural Cranik.
  7. Diferenças entre livro e filme: para quem está curioso sobre O Caçador de Androides literário e o cinematográfico.

Vendo a vida passar – Crônica

De pé sob o sol escaldante, retiro o celular do bolso e confiro o relógio. Lá se vão mais quinze minutos da minha vida. Impaciente, busco a confirmação dos dígitos no visor: o motorista está atrasado, de novo. Praguejo em voz alta sem temer que me ouçam, afinal, não há vivalma no ponto.

De nada adiantou desembestar morro abaixo, resfolegando e pingando suor. Estranho como as coisas, às vezes, acontecem: tivesse seguido sem afobação, eu chegaria bem a tempo… de ver o ônibus passar à toda por mim, com o motorista a ignorar meus acenos frenéticos, como ocorrera tantas outras vezes.

Súbito me vem à mente certa lei universal; novamente questiono se seu formulador não teria percebido a existência de uma força oculta a permear a realidade com o propósito de galhofar conosco diariamente.

Outros cinco minutos me escapam. Olho em volta, suspirando pesadamente. Vejo o matagal alto e poluído, um vira-lata a vagar sem rumo, o caos barulhento da obra próxima; na estrada poeirenta, carros de vários tipos – mas nenhum ônibus – alternam-se em ambos os sentidos.

Noto um resquício de sombra projetada pela placa de identificação do ponto. Buscando seu abrigo, retiro a mochila das costas e apanho um livro. Permito-me entreter com a leitura por alguns minutos e percebo, tarde demais, um grande vulto vermelho e branco passar a mais de noventa por hora ao meu lado: o maldito ônibus!

Exasperado, espanto mais alguns minutos com meus impropérios. Guardo o livro com fúria e, respirando fundo, apanho o fone de ouvido do celular. Quarenta minutos mais tarde, a lista de músicas já se repete pela terceira vez. Comprometendo-me a atualizá-la o quanto antes, eu percorro as estações de rádio, mas nada me agrada.

Guardando o aparelho, noto a aproximação de um homem esbaforido, suado. Respondo ao seu cumprimento, mas evito como posso as suas tentativas de puxar conversa – não o conheço nem estou com saco para ouvir sobre suas dificuldades. Quando penso que sua insistência não terá fim, avisto ao longe o bendito ônibus.

O contentamento logo dá lugar à lamúria: uma multidão se amontoa dentro do veículo. Sem alternativa, submeto-me a mais esta provação. Espremendo-me, encontro espaço entre uma senhora com sacolas de supermercado jogadas aos pés e um gigante musculoso cujo cotovelo paira ameaçadoramente sobre minha cabeça.

Sem espaço para apanhar o celular ou o livro, nem disposição para conversas, permito-me a listar, mentalmente, as razões pelas quais detesto tanto as viagens de ônibus: passagens caras, veículos mal cuidados, desrespeito e incivilidade. Nada, porém, é pior que a inanidade, a total e absoluta falta do que fazer.

Quanto tempo precioso é perdido nas longas esperas e durante as viagens, prolongadas não só pelas paradas constantes, mas também pelo trânsito cada vez mais caótico das metrópoles. A lotação torna tudo mais penoso, afinal, com a atmosfera pesada de odores e calor e pessoas sendo atiradas pelas janelas, quem terá disposição para desfrutar de uma leitura, música ou boa conversa?

Minha mente é invadida pelas lembranças de atividades pendentes: as etapas do projeto, os estudos, a consulta ao médico, o favor ao amigo. Então, suspiro pelo que deve ser a vigésima vez naquela tarde e afasto qualquer pensamento. Inconscientemente, coloco-me num estado de torpor e torno-me como os demais passageiros, apenas outro zumbi a caminho do trabalho.

Por todo o trajeto restante, resigno-me a ver a vida passar através da janela suja.

Tolkien é Tolkien, Martin é Martin – Crônica

Outro dia, enquanto passeava por uma livraria, eu notei uma conversa entre dois amigos. Um deles tinha em mãos A Guerra dos Tronos, o primeiro volume da série de fantasia de George R. R. Martin. Ele falava sobre a história, o autor, e a série de TV, achando um absurdo que o outro não os conhecesse e decidido a convencê-lo a comprar o livro.

Dentre os muitos argumentos utilizados pelo primeiro, que chamarei apenas de marqueteiro, o mais curioso foi: “se gostou d’O Senhor dos Anéis não tem como não gostar deste. O Martin se inspirou no próprio Tolkien”. A resposta pouco convencida e questionadora do outro foi esta: “e quem disse que gostei de Senhor dos Anéis? Curti demais os filmes, muito massa, mas os livros? Nem passei do primeiro”.

Com aquilo na mente, eu me afastei. Circulando pelo lugar, apanhei alguns livros de gêneros semelhantes, li suas capas e contracapas. Então percebi que o argumento do marqueteiro é mais comum do que parece e que há muita verdade na resposta do questionador – exceto pela crítica “velada” a Tolkien, seu maldito herege!

Comparações deste tipo não têm fundamento, não passam de estratégias comerciais baratas e apelativas. Afirmar que quem gostou da saga de Harry Potter vai adorar os livros de Percy Jackson, por exemplo, não faz mesmo sentido. Um fã de Stephenie Meyer (Crepúsculo) talvez não goste de E. L. James (Fifty Shades of Grey), mesmo esta tendo se inspirado naquela.

Particularmente, conheço quem ache Tolkien moroso e odeie sua obra mais famosa, mas que se apaixonou pelos livros de Martin. Como isso é possível? Ora, é simples: cada autor é único e tem as próprias armas para cativar (ou não) os leitores. Não se pode colocar todos no mesmo pacote apenas porque escrevem o mesmo gênero.

O argumento do marqueteiro rui por completo quando constatamos que não se aplica nem aos trabalhos de um mesmo escritor. Antes de sequer conhecer a existência do O Senhor dos Anéis, li O Hobbit e gostei muito. O apelo do marketing me conduziu para a trilogia, da qual eu esperava nada menos do que a perfeição. Mas não foi bem assim.

Não há como negar que a trama é fantástica. Contudo, eu também não encarei facilmente a primeira metade de A Sociedade do Anel. Minhas impressões melhoraram em As Duas Torres, mas sofreram um abalo em O Retorno do Rei. Contudo, no geral, fiquei satisfeito o bastante para experimentar O Silmarillion, novamente seduzido pelos marqueteiros.

Até hoje não cheguei sequer à metade deste livro – já tentei por três vezes, em momentos distintíssimos da vida, por achar-me ainda imaturo para apreciá-lo. Como explicar? É culpa do filho de Tolkien, responsável por remendar as histórias inacabadas deixadas pelo pai falecido? Talvez, mas para mim esta é uma desculpa esfarrapada.

O Hobbit me conduziu a O Senhor dos Anéis e este a O Silmarillion, e, ao longo do caminho, o nível de encantamento pelo escritor diminuiu. Mas isto está errado, não? Ao gostar dos livros de Tolkien eu não deveria gostar de outros cujos autores se inspiraram neste? Como, então, é possível que eu não goste de outros trabalhos do próprio Tolkien?

Não sei, é um mistério. A questão aqui é não se deixar influenciar por este argumento frágil, nem para o bem nem para o mal. Trata-se de não ler nem deixar de ler algo porque gostou ou não do livro de mesmo gênero de outro (ou do mesmo) escritor.

Não se deve julgar antes de conhecer detalhes sobre a obra, opiniões de outros leitores. Se ainda assim achar que vale ou não a pena arriscar, ótimo. O importante é ser questionador.

Para saber mais:

  1. J.R.R. Tolkien X George R. R. Martin: episódio especial do Literatus Cast, podcast do site Homo Literatus.
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