Tag: Fantasia (Página 6 de 7)

Resenha: A Rainha da Primavera (e-Book)

PenaPena

Saiba antes de ler: não sou crítico literário nem detentor da verdade absoluta. O texto abaixo relata as impressões que tive após a leitura deste livro e não traz quaisquer revelações quanto ao enredo.

A Rainha da Primavera é um romance infantojuvenil da jovem escritora paranaense Karen Soarele. Disponibilizado gratuitamente como e-book (.PDF ou .EPUB) e à venda por impressão sob demanda, a obra é uma concisa introdução ao universo fantástico apresentado em Línguas de Fogo, primeiro trabalho publicado da autora.

O livro tem como público-alvo, principalmente, leitores na faixa etária entre 10 e 15 anos – na qual, obviamente, eu não me incluo já há um tempo razoável. A convite de Soarele, porém, arrisquei-me na leitura do e-book (mil vivas ao Kindle!). Ao fim das 87 páginas, porém, frustrei-me ao ver tantos elementos promissores desperdiçados.

Numa ilha que só pode ser encontrada a cada dez anos vive Flora, que há muito anseia por uma vida de aventuras. Quando um guerreiro de olhos rubros e mãos ensanguentadas e um velho de rosto deformado a encontram, seu desejo está prestes a ser realizar. Vindos de um reino ameaçado pela guerra, os dois forasteiros revelam a Flora o segredo de sua origem e a convocam a uma jornada por um mundo além dos confortos de seu lar ancestral.

A premissa de A Rainha da Primavera pode não soar completamente original, mas desperta o interesse. Infelizmente, a obra é prejudicada pelo tamanho, curto demais para possibilitar o desenvolvimento equilibrado de personagens, história e ambiente.

Em mais páginas, protagonistas e antagonistas poderiam ter suas personalidades exploradas com maior profundidade, eventos poderiam ser contextualizados e locais poderiam ser mais detalhados.

Nota-se no texto certo desapego aos detalhes. Em diversos momentos o leitor trava contato com aspectos instigantes do cenário, como a ilha que só pode ser visitada a cada década e seus misteriosos habitantes de pele cinza-esverdeada, uma Guerra Sem Fim, dádivas divinas, entre outros. Nada disso, porém, recebe mais do que descrições breves ou mesmo meras citações.

Em contrapartida, não se alongar em explicações pode ser parte da estratégia de introduzir novos leitores ao mundo de Línguas de Fogo, atraindo-os para o livro principal, onde estariam todos os detalhes não explorados. É uma atitude válida, mas incompreensível em um trabalho cuja proposta é, justamente, expandir esse universo ao contar uma história de seu passado.

Trata-se, ainda, de um risco que pode resultar em efeito contrário se os “ganchos” não forem bem trabalhados; e, novamente, o tamanho do livro dificulta tal tarefa. Todavia, esta questão nem incomodaria tanto se não prejudicasse também o enredo.

A narrativa poderia ter sido mais enriquecida se certos aspectos tivessem sido esmiuçados, como os eventos em torno do passado da protagonista e da sintonia que a torna tão especial aos dois forasteiros.

Por nunca terem os propósitos por trás de suas ações abordadas, os antagonistas também acabam diminuídos a figuras pouco complexas. Não há tons de cinza, tudo é preto e branco; é mau porque é mau, faz guerra por amor à guerra. Contudo, o que poderia soar inverossímil e imaturo numa literatura adulta ou jovem-adulta é aceitável em um infantojuvenil.

Narrando a história em terceira pessoa, Soarele apresenta uma escrita fluída e direta, como convém a esse tipo de obra. Em alguns momentos, porém, a autora tende a se repetir, talvez no intuito de reforçar ao leitor uma imagem ou sensação.

Senti falta de equilíbrio no ritmo da história, que ora se arrasta, ora acelera demais, por vezes até entregando muitas informações numa só tacada – certas revelações teriam maior impacto se não fossem feitas nos primeiros capítulos, por exemplo. A conclusão também se dá de forma muita abrupta.

A Rainha da Primavera é, enfim, uma inocente narrativa mais adequada ao público infantojuvenil. Aqueles que já conhecem o trabalho da autora em Línguas de Fogo, primeiro volume da série intitulada Crônicas de Myriade, tirarão maior proveito desse romance interessante, mas de potencial excessivamente limitado por seu tamanho.

Assim, eu concedo 2 penas-tinteiro (ou estrelas).

E esta é a humilde opinião de um escriba.

Em tempo: está prevista para este ano a publicação do segundo volume das Crônicas, ainda sem título definido. Já A Rainha da Primavera está disponível no blog da autora (veja o link abaixo).

Para saber mais:
  1. Karen Soarele: blog oficial onde é possível adquirir todos os livros da autora, inclusive a versão gratuita do e-book A Rainha da Primavera.
  2. Crônicas de Myríade: belo site oficial sobre as obras de Soarele.
  3. Wiki Myríade: coletânea de informações sobre o universo das Crônicas. Há aviso contra spoilers para os que ainda não leram os livros.
  4. Soarele no Novos Escritores: perfil da autora nesta rede social que integra colegas escritores.
  5. Soarele no YouTube: canal com dicas para escritores e vídeos diversos.
  6. Soarele no Twitter: siga-a e veja o que ela tem a dizer.
  7. Soarele no Skoob: veja as resenhas das obras  já publicadas pela autora e torne-se um fã na rede social de leitores.
  8. Soarele no Facebook: perfil da autora.

13 microcontos

Como prometido, eis treze microcontos que publiquei em meu perfil no Twitter no passado. O leitor notará que há histórias de todos os tipos: fantasia, terror, ficção científica, contemporâneas. Algumas nasceram de modo inusitado (durante uma ida ao banheiro, por exemplo). Espero que gostem.

1

Saudades mil de minha paixão juvenil. Anda, mulher, não demora, não vê que o nosso filho acordado agora chora?

2

– Usei esta corda para me enforcar – disse a figura arroxeada.

– Bom. Que tal pô-la ao redor do pescoço? Perfeito! Agora diga “xis”!

3

– Nossos pais nunca abençoariam nosso amor. Matá-los e casarmo-nos uniu os reinos sob NOSSO poder e… argh!

– MEU poder, meu rei!.

4

06/2012, 66º tentativa de viajar no tempo: fracasso; portal danificado. Sem efeitos cola-

06/2012, 66º tentativa de viajar no tem…

5

Invejava o amigo e o matou; invejou a comoção da mídia e tramou a própria morte. Dado por desaparecido; foi enterrado como indigente.

6

– Ninguém vive aqui; o mestre é um morto-vivo! Tuas almas concederão vida a ele!

E os olhos deles se fecharam para nunca mais abrir.

7

Adoecido, não foi banido por ser herói da tribo; sobrevivente, não foi devorado pelo inimigo; fugido, morreu diante da vila portuguesa.

8

No banheiro.

– Com mais força, anda! Rápido!

– Se a esposa vê isso…

– Esfrega mais!

A porta se abre.

– Café na blusa de novo?

9

Descontente, demitiu-se, farreou, conheceu e transou com uma bela mulher e sua irmã, saltou de paraquedas e… acordou caindo da cama.

10

– Tua espada este corpo matará, mas em ti eu perdurarei!

Da prisão mental, testemunhou o massacre da vila por suas próprias mãos.

11

O Novo Mundo era a salvação; o bandeirismo a chance de aventura. Encontrou só morte e destruição, e na prisão chafurdou na amargura.

12

A cidade é dos invasores. Os tiros ecoam lá de baixo, os refugiados chegam em levas; no Morro todos estamos salvos, ao menos por ora.

13

– Expulsei os inimigos, defendi o reino, tornei-me campeão de nosso Deus! Eu sou a lei!

– Alimente os gatos.

– Sim, minha rainha.

Para saber mais:

  1. Contos para ler durante o cafezinho: artigo onde falo um pouco sobre microcontos (vale a pena conferir as muitas referências por lá).

6. Há muito mais a temer… – Reinos de Aventuras

Rarnar estava diante do ataúde de pedra. Enxergando claramente através da escuridão absoluta, os olhos amarelados contemplavam um cadáver inacreditavelmente bem conservado, envolvido por uma manta rústica. Reproduzido nesta, o emblema da maça-estrela respigando sangue identificava os restos mortais. Não havia dúvida de que realmente estava na Torre Alta.

A tumba não era tão grandiosa quanto descreviam as histórias de seu povo, nem estava repleta de tesouros, para o aborrecimento de seus subordinados – ambos esperavam ser recompensados pelo menos com alguma quinquilharia de valor.

O pensamento divertiu Rarnar, pois ele sabia mais. As palavras do xamã ecoaram em sua mente: um grande achado te dará o respeito de toda a tribo. O Honorável Chefe da Tribo descendia de uma linhagem de guerreiros poderosos e orgulhosos; ele ficaria tremendamente satisfeito com a descoberta do corpo do Cavaleiro Sombrio, seu antepassado mais celebrado.

Chegar à câmara mortuária não fora fácil. As três portas de pedra não podiam ser abertas nem derrubadas sem as ferramentas adequadas. Um dia inteiro passara até que um caminho alternativo fosse encontrado: um buraco escavado há muito tempo entre as ruínas sobre o outeiro. Utilizando uma corda improvisada, esgueiraram-se por terra adentro. Uma vez dentro da tumba, não tiveram dificuldades em encontrar o lugar.

Rarnar rasgou o emblema e cogitou guardá-lo no bolsão de suprimentos, mas mudou de ideia e escondeu-o sob o corselete. Foi então que notou algo postado ao lado do cadáver, fazendo volume sob a manta. Arrancou-a num gesto violento e viu uma comprida haste de ferro; numa extremidade desta havia uma empunhadura de couro desgastado e na outra uma esfera cravejada de espinhos. Assombrou-se com a descoberta. Aquela era a arma que o Cavaleiro Sombrio utilizara em vida para esmagar seus inimigos e que se tornara seu símbolo de guerra: a maça-estrela.

A maça estava bem conservada e Rarnar imaginou que deveria estar protegida por algum tipo de encanto ou maldição. Recordou-se das inúmeras vezes em que o xamã o advertira sobre as ameaças do mundo sobrenatural e resistiu à tentação de ter a arma para si. Olhou em volta; não havia mais nada naquela câmara – ou nas outras que já tinham explorado – que justificasse perder outro dia ali. Estava ansioso para retornar à tribo e desejava que o tempo os permitisse partir logo. Como odiava aquelas malditas tempestades!

Escutou passos apressados no corredor e viu um de seus subordinados aproximando-se com uma expressão de espanto no rosto monstruoso.

– Encrenca, encrenca, encrenca! Temos que cair fora! Encrenca demais pra gente!

Urrou ferozmente, exibindo presas poderosas e calando o recém-chegado.

– Diga duma vez qual é o problema!

– Fui checar a fonte dos estrondos, como ordenou. O tremor derrubou as portas, todas elas. Fui checar as novas passagens e ouvi vozes. Não estamos sós. Vi três deles: um anão, um halfling e… o terceiro parecer ser drow!

Rarnar arregalou os olhos. Escutara direito? Se fosse verdade, estavam realmente encrencados. Certa vez lhe disseram que um drow era capaz de derrotar dez dos melhores guerreiros de sua tribo com os olhos vendados! Contudo, algo não cheirava bem. O que ele fazia ao lado de um anão e um halfling? Não podia pensar num trio mais inusitado.

O instinto o aconselhava a fugir enquanto ainda tinha chance, mas a razão o impedia; sabia que a covardia lhe custaria a posição na tribo que tanto cobiçava. Não podia permitir que a tumba e o cadáver do Cavaleiro Sombrio ficassem à mercê de invasores, especialmente sendo um deles quem era. A situação não era tão desesperadora quanto parecia e talvez até pudesse aproveitar-se dela para obter ainda mais prestígio junto aos seus.

– Onde está Grardur?

– Na sala de morte, vigiando o corredor principal.

Um plano nasceu em sua mente.

– Vamos nos juntar a ele. Emboscaremos os invasores na sala de morte.

– Mas e quanto ao drow?

– Mataremos primeiro! Eles não sabem de nós, temos uma boa chance… não vamos desperdiçar!

****

– Espero que estejam satisfeitos! Avisei que perambular por aí seria perigoso!

Rhístel e Meldeau escutavam a bronca com um ar distraído, o primeiro cuidando de limpar uma gosma esverdeada que empesteava seu florete e o segundo lustrando um anel. Os três estavam de volta à câmara das portas.

– Não me lembro do bom anão mencionar cabeças com asas de morcego! – retrucou o halfling.

Vargouille.

Olhares recaíram sobre o meio-drow, um repleto de desconfiança, o outro de curiosidade.

– Aquela criatura. Vargouilles são seres de outro mundo, muito cruéis e letais. As vítimas de seu beijo se transformam num deles em pouco tempo. Tivemos muita sorte.

– Por Brandobaris, que horror! Aquilo queria me beijar? E eu teria me tornado aquilo? Que nojo! Mas como você sabe disso?

– O mal reconhece seus semelhantes.

Fora Taldor quem alfinetara. Rhístel sustentou o olhar provocador do outro. Mais uma vez coube a Meldeau intervir, apaziguador.

– Ei, estamos vivos, isto é que importa! E graças ao Rhís aqui, a perdição dos vargouilles! Além disso, nossa ousadia foi recompensada! Vejam que lindo anel eu achei!

– Achou? Onde? Não dentro do sarcófago, espero! Não sabe o quanto pode ser perigoso profanar um túmulo? Não tem juízo, baixote?!

Ignorando a censura do outro, o halfling ergueu o anel contra a luz da lamparina, avaliando-o.

– As gravuras são tão bonitas! Será que é mágico?

A carranca de Taldor deu lugar a uma expressão de curiosidade ao ver o anel dançar por entre os dedos do outro. Aquela mudança repentina não passou despercebida pelo meio-drow. As rugas logo retornaram e, sacudindo a cabeça, o anão se afastou na direção da passagem central.

– Bá! Qualquer um vê que não passa de um anel comum! Nem sequer é de um metal valioso!

Meldeau pareceu desapontado, mas guardou o anel consigo assim mesmo. Então a voz poderosa falou novamente:

– Escutem bem, estranhos: as portas estão destruídas e não temos como bloquear estas passagens. A tempestade ainda vai demorar a passar. Não sabemos o que mais tem por aí, então é melhor-

– É melhor explorarmos mais! Sim, vamos descobrir o que há por aí!

Interrompido pelo tom descontraído, Taldor se virou a tempo de ver o pequenino desaparecendo pela segunda passagem lateral. Atônito, ele vociferou:

– Que diabos há de errado com esse halfling?! Ele quase foi transformado num varoile há pouco! Não aprendeu nada?!

Rhístel teria rido da reação se não estivesse preocupado com a atitude sempre inconsequente do amigo. Precisavam ter uma conversa séria. Contudo, por ora, não permitiria que ele vagasse sozinho pela tumba. Era incrível como Meldeau parecia aprender devagar e esquecer rápido o que aprendeu.

Aquela câmara era semelhante à outra, mas, ao invés de um sarcófago, havia uma pequena arca, postada no centro. Agachado diante dela, a figura do halfling remexia os bolsos à procura de suas ferramentas. Rhístel e Taldor testemunhavam tudo de pé à porta.

– Que pensa que está fazendo?

– O que o bom anão sugeriu: explorando o lugar! Aposto que há algo valioso aqui!

– Não disse para explorar nada! Temos que ficar de olho nas passagens até a tempestade passar, isso sim! Já disse que não é seguro vagar por tumbas!

O meio-drow avaliou o lugar: as pegadas diminutas no piso empoeirado indicavam que ninguém além do amigo estivera ali. Preocupou-se ao notar estranhas reentrâncias nas paredes.

– O anão tem razão, Mel. Talvez seja melhor se afastar daí.

Pedindo paciência com um gesto rápido de mão, Meldeau puxou um conjunto de peças de ferro intricadas e deitou-se diante da arca. O tilintar que se seguiu indicou que ele ignorara solenemente as advertências. Alguns segundos depois, ele falou, eufórico:

– Está destrancada, mas não posso abrir ainda. Tem uma armadilha aqui.

– Mais uma razão pra deixá-la onde está!

– Relaxe, meu bom anão, eu posso desarmá-la. Entendo do assunto. Ora, em minha terra natal eu costumava caçar grandes feras somente com minhas armadilhas. Na verdade, lembro-me agora da vez em que capturei um korac, a grande fera azul de duas cabeças, usando só algumas cordas, isca e estacas de madeira!

Taldor bufou em descrença, Rhístel riu por dentro.

Um estalido metálico soou.

– Pronto, está desarmada!

O halfling largou as ferramentas de lado e abriu a arca. Somente ao ouvir o som inequívoco de mecanismos de disparos ecoando detrás das paredes é que o meio-drow compreendeu o propósito das reentrâncias. Dardos de madeira saltaram ao mesmo tempo de todos os lados à procura de alvos. O trio mal teve tempo de reagir; cada um buscou proteger-se da melhor maneira que pôde.

Ouviu-se um grito de dor e o som de madeira chocando contra pedra. Depois silêncio.

– Acabou?

Nenhum outro dardo saiu das paredes.

– Excelente trabalho, mestre armadilheiro*!

A voz grave veio acompanhada de um gemido. Arrependido e temendo o pior, Meldeau correu em auxílio do anão. Rhístel manteve-se distante, observando. Então ele riu por dentro ao ver que o ferimento não era prejudicial, exceto, talvez, para o orgulho de seu portador, que fora atingido numa das nádegas.

Aliviado, Meldeau murmurou mil desculpas e ofereceu-se para fazer um curativo.

– Conheço diversos tratamentos. Na minha terra natal existem ervas curativas para muitos males. É uma pena que eu não tenha nenhuma aqui comigo, mas eu posso tentar estan-

Calou-se diante do olhar frio que recebeu. Afastando-se, Taldor murmurou algo sobre sua honra jamais permitir que lhe tocassem o traseiro! Certificando-se de que seu companheiro também estava bem, Meldeau correu em direção à arca novamente e apanhou seu conteúdo.

– Vejam que tesouro! Mais uma vez nossa ousadia nos recompensa!

O halfling exibiu uma bandana de couro, duas contas peroladas e uma sacolinha encardida.

– Nossa ousadia?! Tua inconsequência, baixote, nada mais!

Meldeau abriu a sacolinha. Sorrindo, ele retrucou:

– Ora! Imagino, então, que estas preciosas moedas de ouro devam ser minhas, estou certo?

– Fique com estas moedas malditas! Não quero nenhum tesouro resgatado de uma tumba!

Dando de ombros, o halfling assobiou para o meio-drow e jogou-lhe a bandana, dizendo:

– É muito grande para minha cabeça.

Rhístel notou com curiosidade os rebites de ferro que cravejavam a peça e decidiu guardá-la; ele poderia analisá-la mais tarde. Meldeau colocou as contas e suas ferramentas dentro da sacolinha e guardou esta num de seus bolsos, dizendo para o amigo:

– Podemos repartir o tesouro quando terminarmos a exploração, afinal, o anão não faz nenhuma questão dele.

– Não mesmo! E não haverá mais exploração! Vamos esperar a tempestade passar, já disse!

– Mas…

– Nada de “mas”, Mel. Sua curiosidade já nos atraiu problemas demais por uma noite. Teve o seu momento de explorador de tumbas, até já encontrou seu tesouro. Vigiaremos a passagem central até que o tempo melhore e possamos partir.

O novo protesto morreu nos lábios do halfling ao notar o semblante de Rhístel e o olhar duro do anão. Não entendia o porquê de tanta cautela. O que eles tanto temiam, afinal?

Continua…

* Nota do Autor: não encontrei a palavra armadilheiro no dicionário, mas já a li em alguns contos fantásticos. Por isso, eu tomei a liberdade de utilizá-la aqui para identificar o indivíduo que trabalha com preparação de armadilhas. Entendam como liberdade poética.

Uma palavra sobre a ambientação desta série: as histórias ocorrem no mundo fantástico de Faerûn, descrito no cenário de campanha de RPG Forgotten Realms (Reinos Esquecidos). Elas também foram inspiradas em diversos módulos de aventuras criados para o jogo Dungeons & Dragons (Masmorras e Dragões). Todos os direitos sobre estas marcas pertencem à editora Wizards of the Coast, não sendo minha intenção violá-los. Estes textos são uma ficção de fã (do inglês, fan fiction ou FanFic) e não objetivam qualquer lucro.

Para saber mais:

  1. Capítulo Anterior – Portas Abertas
  2. Reinos de Aventuras, histórias de fantasia: onde explico o modo como pretendo publicar esta série no blog.

5. Portas Abertas – Reinos de Aventuras

– Depressa, baixote, diga o que aprontou!

– Já disse que as portas caíram! Não foi minha culpa! Eu só esta-

Guinchos preencheram o ambiente. Atravessando o vazio deixado por uma das portas, uma turba de ratos encharcados surpreendeu a todos e correu freneticamente pelo lugar, metendo-se em frestas e buracos. Meldeau pisou e chutou os que se aproximaram demais.

– Ei, um deles entrou em minha roupa! Sai, Sai!

– Deixe de bobagem, baixo-

Uma ratazana enorme voou de uma das pernas da calça do halfling e chocou-se contra o peito do anão. Atabalhoado, ele tentou martelá-la, mas errou o golpe. Antes que pudesse tentar novamente, os roedores desapareceram tão repentinamente quanto surgiram.

Taldor bufou, ignorando um sorrisinho amarelo de desculpas. Encarou os três novos vãos nas paredes. Como as portas tombaram tão facilmente? Aquela situação não lhe agradava. Com o canto do olho, ele notou que o meio-drow parecia compartilhar de sua preocupação.

– Ei, tive uma ótima ideia! – disse alguém nem um pouco preocupado. – As portas estão abertas, estamos todos acordados… Que tal explorarmos um pouco o lugar? A tempestade não parece perto de acabar e sabe-se lá o que podemos encon-

– Já esqueceu o que te disse, baixote? Os mortos não apreciam profanadores de tumbas!

– Ora, os mortos não apreciam nada!

Meldeau apanhou sua lamparina.

– Eu digo que não há nada a temer deste lugar. Que tal começarmos por…

Uma brisa fria soprou como uma lamúria através do vão central.

– …aquela passagem ali?

Ignorando o arrepio nos pés, ele afastou-se para um dos vãos laterais e o atravessou, sem esperar pelos outros.

****

Meldeau seguiu por um corredor estreito. Parando à entrada de uma câmara, escutou o rumor de chuva, o som da própria respiração e mais nada. A luz indistinta mal iluminava, como se absorvida pela escuridão.

A vida de viajante errante proporcionava experiências interessantes. Exploraria uma tumba pela primeira vez na vida! Aquele pensamento provocou um sorriso. Finalmente, ele poderia descobrir a veracidade de tudo o que já ouvira sobre tais lugares!

Uma corrente de ar estremeceu a chama da lamparina e as sombras assumiram formas estranhas. Repentinamente, as palavras do anão ecoaram em sua mente. Sombras dos mortos. Sentiu seus pés arrepiarem e o sorriso vacilar.

Então veio um sopro à nuca:

– Tolo!

Virou-se instintivamente, certo de que toparia com algum morto ressurreto.

Topou com Rhístel.

– Tumbas podem ser locais perigosos, Mel.

O halfling suspirou aliviado por um instante, e então indagou:

– Perigoso? Mesmo? Você acredita que os mortos podem…

– Há muito mais a temer do que os mortos.

– Como a rabugice de um anão desconfiado?

O meio-drow sorriu.

– Precaução nunca é demais, nisto ele tem razão.

Meldeau não se mostrou convencido. Olhou de esguelha para a câmara próxima e de volta para o amigo, então inclinou ligeiramente a cabeça. O outro sorriu novamente. A curiosidade do pequenino era uma adversária difícil de subjugar.

A lamparina iluminou uma saleta empoeirada. Nada havia ali além de uma sombra que se erguia defronte à entrada. Rhístel pôs-se de lado para avaliar melhor o local, mas seu companheiro afoito foi de encontro à sombra, que se revelou ser um sarcófago de pedra. Entalhada ali havia uma figura encorpada e peluda, com mãos e pés repletos de garras. Algo na cabeça, porém, parecia destoar do restante da escultura: não havia pelos ou presas, mas inúmeros tentáculos. Curioso, o halfling tentou iluminá-la melhor.

Uma sombra se moveu, reagindo à luz. Um guincho funesto ecoou.

Rhístel buscou a origem do som e um brilho de reconhecimento assomou em seus olhos ao notar um par de asas de morcego se alongar e duas chamas vermelhas se acenderem entre elas. Meldeau gritou e tropeçou. Antes de atingir o chão, ele viu a estranha cabeça com tentáculos voando em sua direção!

****

Deixado sozinho no escuro, Taldor buscava um modo de bloquear novamente as três passagens. Com o martelo de batalha preso sob o aperto firme de sua mão, ele correu os olhos pelo lugar, mas não encontrou nada que pudesse servir como barricada – as portas de pedra tinham se despedaçado com a queda. Bufou ao perceber que não tinha alternativa a não ser lidar com a situação.

– Gorm me carregue se tiver que me abrigar noutra cova como esta!

Ignorando uma familiar (e incômoda) vibração nos tímpanos, ele se aproximou do vão central e usou sua visão privilegiada, mas tudo o que enxergou foi um corredor comprido. De soslaio, notou as passagens laterais, demorando-se naquela por onde o halfling e seu companheiro seguiram.

O anão estava taciturno. Desconfortava-o saber que se abrigara numa tumba construída por uma raça que desprezava, mas isto não era tudo. Havia algo errado naquele lugar. Algo sobrenatural.

Um silvo terrível ecoou à distância.

Taldor hesitou. Teriam os estranhos encontrado mais do que esperavam ou seria uma armadilha? Ouviu gritos estridentes e o som de metal contra pedra. Sorriu ao pensar que ambos mereciam estar em apuros e cogitou deixá-los à própria sorte. Contudo, se algo acontecesse aos dois, então ele teria de lidar sozinho com os perigosos que aquela tumba tinha a oferecer. Suspirando pesadamente, ele apertou o cabo do martelo e rumou na direção dos sons de batalha.

****

Caído próximo ao sarcófago, Meldeau tentava compreender o que acontecera. O que voara em sua direção? Não conseguira ver direito! Sentiu o ar batendo sucessivamente contra seu rosto…

Pairando sobre ele havia uma cabeça de feições distorcidas e demoníacas, de pele amarronzada. As orelhas eram pontiagudas e o nariz miúdo contrastava com a bocarra repleta de dentes. Inúmeros tentáculos pendiam como tranças vivas da testa proeminente, e duas longas asas de morcego batiam freneticamente de cada lado. Um par de olhos vermelhos brilhava como brasa.

O halfling desejou fugir do horror alado, mas estava paralisado. Ao notar que o guincho sombrio ainda retumbava em seus ouvidos, ele soube que estava sob algum efeito sobrenatural. Desesperado, fez a única coisa que podia: gritou e gritou!

Certa de que sua vítima estava indefesa, a criatura voou de encontro ao meio-drow.

Compreendendo de imediato o que acontecera ao companheiro, Rhístel sacou seu florete para se defender. Por sorte, ele resistira ao poder paralisante de alguma forma. Com uma expressão irada, a cabeça o atacou. Por três vezes ele tentou atingi-la, mas esta sempre desviava com um ágil bater de asas. Então ela afastou-se para um ponto além do alcance de sua arma e o encarou com um sorriso maléfico.

Iluminado parcamente pela lamparina caída ao chão, o ser monstruoso abriu a bocarra num urro silencioso; lá de dentro seu hálito emanou como uma névoa fétida e avermelhada. Rhístel sentiu-se atordoado. A visão grotesca lhe drenou qualquer vontade de resistir. Prendendo a respiração, ele concentrou-se nos olhos vermelhos, o suor escorrendo em sua têmpora escura.

A criatura investiu num rasante. Aguardando até o último instante, quando a cabeça estava frente a frente com a sua própria, o meio-drow varou-a de baixo a cima com um movimento ágil e preciso do florete. As chamas demoníacas se extinguiram, asas e tentáculos penderam sem vida. Num ato de puro reflexo e nojo, Rhístel atirou seu florete com a cabeça ainda empalada para o outro lado da sala.

Recostando-se na parede, inspirou profundamente para recuperar o fôlego. Foi então que ouviu o som de passos pesados ecoando pelo corredor próximo e viu a figura atarracada do anão entrando na câmara.

Continua…

Uma palavra sobre a ambientação desta série: as histórias ocorrem no mundo fantástico de Faerûn, descrito no cenário de campanha de RPG Forgotten Realms (Reinos Esquecidos). Elas também foram inspiradas em diversos módulos de aventuras criados para o jogo Dungeons & Dragons (Masmorras e Dragões). Todos os direitos sobre estas marcas pertencem à editora Wizards of the Coast, não sendo minha intenção violá-los. Estes textos são uma ficção de fã (do inglês, fan fiction ou FanFic) e não objetivam qualquer lucro.

Para saber mais:

  1. Capítulo Anterior – Sombras e Desconfianças
  2. Reinos de Aventuras, histórias de fantasia: onde explico o modo como pretendo publicar esta série no blog.

4. Sombras e Desconfianças – Reinos de Aventuras

Chovia a cântaros e nenhum outro som ecoava no abrigo. O ar estava pesado e a luz indistinta da lamparina criavam sombras ameaçadoras. Sentados em cantos opostos, Taldor Fendeaço e Rhístel Sanguélfico trocavam olhares, buscando desvendar os pensamentos um do outro.

Rhístel sabia avaliar as pessoas e orgulhava-se disto. Todavia, não precisava valer-se deste seu talento natural para adivinhar o que ia à cabeça do outro: o desconforto era evidente na carranca, no bico proeminente e nos olhos negros cerrados sob as sobrancelhas grossas. Não que se importasse; já se acostumara a ignorar aqueles que o prejulgavam e teria feito o mesmo ali, não fosse o temor por sua vida e pela de seu amigo. O que aconteceria quando a tempestade (e a trégua) cessasse?

Por sua vez, Taldor, amofinado, repensava sua reação inicial. Permitira que seu julgamento fosse influenciado pelo mesmo orgulho e preconceito que o levaram abandonar seu povo. Ainda que haja muito convivesse com outras raças, ainda demonstrava muito da desconfiança de seus pares – mais até do que gostaria de admitir.

– Estou curioso sobre este lugar. Estes entalhes não revelam muita coisa.

Era a voz estridente do halfling. Alheio à animosidade entre os dois, ele perambulara pelo abrigo incessantemente desde sua chegada.

– Lembro-me das histórias que escutei lá em Fortenovo. Falavam de guerras, goblinóides e tumbas espalhadas por toda esta região.

O anão tentava ignorar a tagarelice do outro, enquanto sua mente trabalhava. Parecia-lhe inconcebível a parceira do baixinho de pés peludos com um mestiço drow. Por que…

– Dizem que é possível encontrar coisas valiosas em tumbas; joias, ouro, relíquias antigas. Vocês acham que podemos estar numa tumba?

Um sonoro e exasperado sim escapou por entre lábios grossos. Seria pedir demais por um pouco de silêncio? Pensou numa forma de aquietar o outro, então falou novamente com sua voz poderosa:

– E tem mais: esta tumba é maldita! Se fosse tu, me sentaria quietinho. As sombras dos mortos podem se interessar por ti, baixote.

Aquilo silenciaria o tagarela, tinha certeza.

– Sombras dos mortos? Acha que podemos estar em perigo?

Equivocara-se. Bufando, silenciou-se e viu o outro se voltar para o meio-drow em busca de uma resposta, mas tudo o que este encontrou foi um dar de ombros.

Meldeau ponderou sobre aquelas palavras. Seria a tumba assombrada? Sorriu por dentro ao pensar na possibilidade de encontrar um fantasma – ah, as coisas que este poderia lhe revelar sobre o “outro lado”! Isto é, se fosse um tipo amistoso, é claro.

Ainda pensando a respeito, ele passou a analisar as portas de pedra maciça. Não havia qualquer trinco, maçaneta ou mecanismo que as abrisse. Era como se aqueles blocos imensos tivessem sido simplesmente encaixados naqueles vãos. Seria preciso uma força descomunal para fazê-lo!

Um clarão e um estrondo preencheram o ar e o lugar todo estremeceu por um instante; partículas de poeira caíram do teto. O halfling encolheu-se e olhou temeroso para a porta mais próxima. Teria ela vibrado?

– Se fosse você, eu me afastaria daí, Mel, as sombras dos mortos podem te agarrar. – zombou o meio-drow ao notar a apreensão do amigo.

****

Sentado diante de uma porta, Meldeau estava tão distraído que sequer percebeu ser o único ainda acordado – aparentemente, o cansaço sobrepujara os outros dois. Contudo, nenhum sono seria capaz de aplacar a curiosidade do halfling.

Ele tentara desvendar os afrescos desgastados dispersos pelas paredes, mas estes lhe revelaram pouco: um reino assolado por guerras, guerreiros derrotados honrados como patronos dos vivos, riquezas enterradas com seus senhores em tumbas. Nada diferente do que escutara em sua passagem por Fortenovo.

Taldor dissera que estavam numa tumba. Se aquilo era verdade, então o que poderiam encontrar ali? Haveria algum tesouro, talvez? Detestava a sensação de incerteza. Precisava descobrir o que havia atrás das portas, mas abri-las parecia impossível. Então se lembrou de que anões eram seres notórios por sua familiaridade com rochas… e aquelas eram portas de pedra, não eram?

O raciocínio pareceu perfeitamente lógico. Lançou um olhar fortuito para a figura atarracada e cabisbaixa num canto escuro. Precisava convencer o desconfiado a ajudá-lo, mas não seria fácil. Valer-se-ia de uma técnica de persuasão que aprimorara ao longo dos anos: insistir, insistir e insistir, como uma criança que atazana o pai até que este lhe realize qualquer vontade apenas para livrar-se da chateação. Obviamente, corria o risco de levar uns bons safanões – como acontecia na maioria das vezes, na verdade –, mas as chances de sucesso melhoravam sempre que Rhístel estava ao seu lado.

Decidido e sem paciência para esperar o amanhecer, Meldeau levantou-se para acordar o anão.

Um estrondo, um tremor, e, de repente, a porta diante dele caiu.

Assustado com o trovão, o halfling tropeçou e bateu as costas no chão, escapando por pouco de ser esmagado. Dois outros estrondos soaram não muito distantes.

Rhístel pôs-se de pé num movimento rápido demais para alguém que estivera dormindo. Com o florete em punho, ele escrutinou o ambiente. Diante dele, Taldor estava sentado com uma expressão de confusão, olhos vidrados – fora despertado de um sono pesado, mas sua precaução lhe permitira apanhar o martelo de batalha prontamente.

Olhares desconfiados foram trocados.

Gemidos abafados chamaram a atenção dos dois para alguém caído numa nuvem de poeira. Quando o meio-elfo ajudou Meldeau a levantar-se, logo entendeu o que acontecera: alguma coisa abalara a estrutura do outeiro, provavelmente um raio que caíra perto demais. As portas de pedra jaziam no chão, dando lugar a três aberturas sombrias e nada convidativas.

Continua…

Uma palavra sobre a ambientação desta série: as histórias ocorrem no mundo fantástico de Faerûn, descrito no cenário de campanha de RPG Forgotten Realms (Reinos Esquecidos). Elas também foram inspiradas em diversos módulos de aventuras criados para o jogo Dungeons & Dragons (Masmorras e Dragões). Todos os direitos sobre estas marcas pertencem à editora Wizards of the Coast, não sendo minha intenção violá-los. Estes textos são uma ficção de fã (do inglês, fan fiction ou FanFic) e não objetivam qualquer lucro.

Para saber mais:

  1. Capítulo Anterior – Encontro Inesperado
  2. Reinos de Aventuras, histórias de fantasia: onde explico o modo como pretendo publicar esta série no blog.

3. Encontro Inesperado – Reinos de Aventuras

Taldor encontrou as ruínas da torre momentos antes da tempestade desabar ruidosamente. Todavia, para seu desgosto, o local não fornecia proteção. A única alternativa era abrigar-se sob o outeiro onde a antiga construção fora erigida. Não desejava fazê-lo, mas percebeu que não tinha escolha quando os primeiros raios cortaram os céus.

Circundando a encosta, ele procurou pela pesada pedra que bloqueava a passagem subterrânea. Surpreendeu-se ao deparar com um grande buraco no terreno; para além dele, uma escuridão nada convidativa. Fragmentos cobertos pela grama revelavam que a pedra fora destruída.

Gotas de chuva lhe atingiram o corpo. Cauteloso, atravessou a entrada. Quando seus olhos de anão se ajustaram à escuridão, viu, em tons de cinza, uma câmara vazia e empoeirada. As paredes não eram naturais, mas cortadas; arabescos despedaçados e pinturas desgastadas sugeriam que o lugar já fora decorado cuidadosamente. Três portas de pedra maciça assomavam à esquerda, à direita e diretamente à frente.

Escolheu um canto escuro e sentou-se defronte às portas, mas não sem antes cuspir duas vezes no chão, como sempre fazia em lugares como aquele. Ficou ali por um bom tempo, em silêncio, escutando os sons vívidos da tempestade que castigava as colinas do lado de fora. Tentava ignorar o que sabia sobre aquele local. Concentrou-se nas runas incrustadas em seu martelo de batalha e logo lembranças melhores vieram à mente.

Um som como o de pedras rolando soou acima do barulho da chuva, sucedido por um pesado baque. Algo caíra pela encosta íngreme do outeiro. Taldor pôs-se de pé em prontidão, o martelo firme nas mãos.

– Erra-me, Brandobaris! Esfomeado, encharcado e agora enlameado!

A voz de criança atraiu-o para a entrada a passos lentos. Relaxou o aperto no cabo de sua arma. Um raio cruzou os céus e o brilho fugaz delineou uma sombra diminuta. Ainda tentava assimilar o que vira, quando a voz infantil falou novamente:

– Amigo… seja quem for, saiba que sou um amigo. Estou fugindo da tempestade, é só.

Havia algo familiar naquela voz e, por um instante, pensou que talvez não fosse realmente de uma criança. Novamente apertando a haste do martelo, firmou os pés no chão e berrou:

– Mais perto, estranho. Venha devagar e deixe ver tua fuça!

Uma lamparina foi acessa. Através da entrada, a luz espantou as trevas e revelou o inesperado visitante: como imaginara, tratava-se de um halfling – particularmente esguio e diminuto, era um exemplar curioso daquela raça de seres pequeninos que pareciam sempre estar de bem com a vida.

Por outro lado, Meldeau surpreendeu-se com a figura atarracada e robusta, trajada numa cota de malha bem cuidada e portando um martelo de aparência letal – trazia, ainda, uma pequena mochila às costas. Já vira muitos anões de perto, mas aquele era estranho: não tinha barba e mantinha os cabelos negros bem rentes à cabeçorra. Decidiu tomar a iniciativa ao notar que os dedos poderosos aliviaram a tensão em volta da haste de sua arma. Apresentou-se com uma mesura. A resposta veio seca:

– Fendeaço… Taldor Fendeaço.

O anão não esperava que o pequenino criasse problemas. Contudo, não deixara de notar que ele trazia uma pequena maça presa à cintura e permaneceria alerta até que as palavras pacificadoras fossem proferidas, como era de praxe.

Silêncio.

– Uma de duas: ou tua intenção aqui não é boa, ou é tua primeira viagem por estas bandas.

As palavras deixaram Meldeau desconcertado. Esperava uma atitude mais receptiva. Estava apático, sem saber o que fazer ou dizer. Piscando, inclinou ligeiramente a cabeça, num gesto genuíno de incompreensão.

Taldor julgou que a segunda opção era correta e, com voz grave, falou sobre um velho costume da região: durante as tempestades elétricas, todos os que buscavam abrigo em um mesmo local firmavam uma trégua; não poderia haver qualquer luta até o fim do temporal. Aquele era um acordo silencioso, mas havia quem preferia formalizá-lo com as palavras adequadas. O anão era um deles.

– Um costume muito sensato, se me permite dizer. De acordo, então – disse o halfling; sorrindo, lembrou-se das palavras exatas que o outro acabara de revelar. – Paz na tempestade?

A trégua foi confirmada. O sorriso de Meldeau se alargou, mas desapareceu quando este notou um movimento nas sombras próximas. Quase se esquecera de Rhístel! Por um instante, imaginou o estrago que o grande martelo de batalha faria ao seu pequeno crânio caso seu portador se sentisse tapeado ou ameaçado. Precisava ser cuidadoso agora, pois sabia o efeito que o companheiro causava nas pessoas à primeira vista.

– E… Esqueci-me de dizer-lhe algo, amigo… Taldor? Acontece que não estou viajando sozinho.

Como que reagindo àquelas palavras, um vulto esguio e encapuzado saltou das sombras à sua esquerda, aproximando-se da luz irradiada pela lamparina.

– Paz na tempestade.

As palavras soaram como um sussurro, mas o anão as compreendeu. Sobressaltado pela súbita aparição, agora estava mais alerta do nunca. Encarou a dupla, o olhar desconfiado ora sobre um ora sobre outro. Confirmou a trégua. Então o novo visitante removeu seu capuz demoradamente e o encarou com olhos de negrume. Mas não foram estes que se destacaram e sim os cabelos prateados, quase brancos, e a pele escura como obsidiana. Por um instante, não pôde acreditar no que via, mas as orelhas pontiagudas não dava margem a dúvidas.

Drow – disse com desprezo, erguendo o martelo ameaçadoramente. – Que trapaça é esta?

Meldeau sabia ser ele o interpelado, ainda que o outro encarasse Rhístel fixamente. O amigo tinha o semblante severo; seu corpo permanecia imóvel, as mãos caídas ao lado do corpo – a esquerda estava próxima ao cabo do florete cuja bainha trazia presa à cintura. A tensão entre ambos era palpável e ele precisava fazer algo; ergueu os braços de modo apaziguador e sorriu nervosamente:

– Não há trapaça. Este é Rhístel, um bom amigo. Conhecemo-nos há muito tempo e asseguro-lhe que é de confiança.

Drow não são de confiança! Não passam de monstros assassinos! Só um tolo confiaria numa raça de cães traiçoeiros… ou nos que lidam com eles!

– Não precisamos de sua confiança, apenas de um abrigo. – Rhístel falou em tom sombrio.

Aquela atitude amargurada nunca facilitava as coisas, mas como poderia censurá-lo? Sequer ousara imaginar as dificuldades que o companheiro enfrentara por conta de sua ascendência. Ainda assim, não era preciso provocar uma luta inútil.

– Ouça-me, Taldor… amigo… entendo como se sente, acredite. Também me senti assim certa vez, para minha vergonha. Mas Rhístel já me deu provas suficientes de seu caráter e posso lhe dar minha palavra que ele é de confian-

– A palavra dum halfling estranho e desonesto! Bá!

– Ora! Já que minha palavra não é o bastante, que tal ao menos honrar a sua própria?! Rhístel invocou a trégua!

Uma bofetada não deixaria o anão mais espantado. A atitude indignada e atrevida do pequeno o fez sentir-se estúpido. Cedera ao mesmo preconceito odioso que o levara a partir de sua terra natal. Mas pelo machado de Gorm, aquele era um drow! Conhecia as histórias hediondas sobre tal raça. Todavia, comprometera-se com a trégua e deveria manter sua honra ou não seria digno de seu nome.

Taldor abaixou o martelo e fulminou a dupla de estranhos com o olhar; sem se virar, afastou-se para um canto escuro. Respeitaria a paz na tempestade pelo tempo que esta perdurasse. Se fosse preciso, lidaria com ambos mais tarde.

Suspirando aliviado, o halfling indicou um lugar bem afastado para o companheiro. Seguindo nos calcanhares de Rhístel, pensou que este sempre teria problemas ao lidar com os outros enquanto cultivasse a fala audaciosa, os métodos esquivos e a mania de esgueirar-se pelas sombras. E antes de sentar-se, não pôde evitar um comentário atrevido:

– E para o seu governo, Taldor Fendeaço, Rhístel é apenas MEIO drow.

Continua…

Uma palavra sobre a ambientação desta série: as histórias ocorrem no mundo fantástico de Faerûn, descrito no cenário de campanha de RPG Forgotten Realms (Reinos Esquecidos). Elas também foram inspiradas em diversos módulos de aventuras criados para o jogo Dungeons & Dragons (Masmorras e Dragões). Todos os direitos sobre estas marcas pertencem à editora Wizards of the Coast, não sendo minha intenção violá-los. Estes textos são uma ficção de fã (do inglês, fan fiction ou FanFic) e não objetivam qualquer lucro.

Para saber mais:

  1. Capítulo Anterior – Pelos Ermos Verdejantes
  2. Reinos de Aventuras, histórias de fantasia: onde explico o modo como pretendo publicar esta série no blog.

2. Pelos Ermos Verdejantes – Reinos de Aventuras

Taldor Fendeaço interrompeu os passos para lançar um olhar preocupado para o céu. Um sol pálido se fez notar no oeste por trás de nuvens cinzentas. Um vento frio soprou através dos cumes gramados, carregando um aroma bem familiar ao jovem anão: chuva. O tempo mudara novamente.

Era sempre assim naquela região, àquela época do ano. Não pela primeira vez, ele atravessava os ermos verdejantes em direção a Arnglar. O vilarejo não tinha qualquer atrativo, mas o apreço que desenvolvera por seus habitantes o tornavam um segundo lar.

Por seus cálculos, a viagem não duraria muito mais. Estava farto daquele território desolado e das chuvas diárias. Naquele momento, outra tempestade se formava sobre sua cabeça; precisava encontrar novo abrigo. Os temporais eram muito fortes, principalmente no verão, e seu camisão de cota de malha seria um chamariz perfeito para os raios mortíferos.

Correndo os olhos pela paisagem, sentiu-se perdido momentaneamente. Os ermos não forneciam pontos de referência e até mesmo um rastreador experiente, munido de um mapa ou dois, poderia se perder facilmente. Taldor não era um rastreador; estava longe de conhecer todos os caminhos. Ele tampouco confiava nos mapas dos Reinos Fronteiriços – estes jamais acompanhavam o ritmo vertiginoso com que reinos e cidades surgiam e desapareciam por ali. Contudo, dispunha de uma ferramenta útil que sempre lhe indicava para onde seguir.

Certificando-se da direção a tomar, Taldor forçou um pouco a memória e lembrou-se de um local situado não muito distante de onde se encontrava. Embora a idéia de abrigar-se naquele buraco não lhe agradasse, sabia não ter escolha. Lançando outro olhar preocupado para os céus, ele preparou suas coisas e aumentou o ritmo das passadas, esperando atingir o abrigo antes que a tempestade o atingisse.

* * * *

O poente refletiu na pedrinha erguida contra o céu. Recostado no tronco de uma árvore frondosa, Meldeau Desbravaterras admirava seu amuleto e descansava de uma caminhada que considerara longa demais. A visão da pedra polida girando diante de seus olhos cor de mel sempre relaxava o jovem halfling.

Magnífica. Encantava-se com o branco que jamais encardia e com o brilho sobrenatural emitido quando tocada pelos raios solares. Embora a pedra parecesse mágica, ele sabia não haver nela nada de extraordinário – nada além de sua própria beleza e origem. A imagem da lagoa sagrada invadiu sua mente, trazendo lembranças da terra natal. Há quanto tempo partira? Não lembrava bem.

Desviou o olhar para o mar de colinas que se estendia por toda a sua volta. Aquela era uma terra de ninguém, sem atrativos e sem vida. Não havia nada ali além de grama. A árvore sob a qual se encontrava poderia muito bem ser a única num raio de muitos quilômetros. Sentia falta das flores e das árvores da floresta, sentia falta da lagoa. Estava muito longe de casa.

Um farfalhar sobre a cabeça afastou a saudade. Colocou o pingente rústico em volta do pescoço, escondendo a preciosa pedra sob o corselete de couro batido, e olhou para o topo da árvore. Viu um vulto mover-se com agilidade por entre os galhos para cair de pé ao seu lado. Sorriu como sempre fazia diante das estripulias acrobáticas de seu companheiro de viagem.

Rhístel Sanguélfico retribuiu o sorriso com uma piscadela. Sabia que o halfling divertia-se com seus reflexos, ainda que não compreendesse o porquê. Considerava natural a graciosidade de seus movimentos, algo inerente à herança élfica e próprio de seu corpo esguio e diminuto. Acariciando os cabelos espetados que caiam sobre as orelhas ligeiramente pontiagudas, mirou o céu cinzento com olhos negros inteiramente humanos.

Erguendo-se em silêncio, Meldeau olhou para o outro, aguardando o parecer. O rosto de feições delicadas e escuro como obsidiana fusca estava impassível. Quando o silêncio se prolongou, achou que deveria tomar a iniciativa.

– E então, Rhís? – indagou com sua voz estridente.

– Tinha razão, a tempestade vai ser forte. Precisamos nos abrigar. Vi algumas ruínas ao norte.

– Eu te disse, não disse? Os pêlos de meus pés nunca me traem! Sempre posso contar com eles para evitar coisas ruins!

Rhístel encarou a figura de cabelos encaracolados e sorriu; achava curioso que tanto as madeixas quanto os tufos de pêlo nos peitos dos pés tivessem a mesma cor flamejante.

– Quanto aos seus pêlos eu não sei, mas é certo que seus pés são bons para tirá-lo de enrascadas, Mel. – disse, fazendo troça.

Meldeau sorriu, corando de vergonha. Percebera ali a referência velada à partida apressada de Fortenovo, palco da mais recente encrenca provocada pela curiosidade quase infantil. O olhar do companheiro estava fixo sobre ele, como se esperasse que dissesse algo. Pelo visto, Rhístel ainda estava disposto a tentar entender o que, exatamente, havia acontecido naquela aldeia.

– A que distância as ruínas estão? – questionou, mudando o rumo da conversa.

– Não muito longe. Partindo agora, chegaremos antes que a água caia.

– Você não respondeu à pergunta. – um sorriso irônico assomou no rosto redondo.

– Nem você.

O halfling franziu o cenho.

– Desculpe, não percebi que havia feito uma.

– Não diretamente. – o tom de voz soara subitamente sério.

Meldeau olhou demoradamente para o norte, fingindo-se de desentendido. Soprando algo como “vamos indo então”, ele começou a caminhar apressadamente, sem olhar para trás.

Suspirando e seguindo no rastro do companheiro, Rhístel imaginou quando a razão da fuga de Fortenovo lhe seria revelada. Aborrecia-se com a constante esquiva do assunto; fosse o que fosse, achava-se no direito de saber, afinal, também fora envolvido. Respeitaria o silêncio do halfling por ora, então tentaria novamente. Tentaria quantas vezes fosse necessário, mas descobriria em que confusão Meldeau se metera daquela vez.

Continua…

Uma palavra sobre a ambientação desta série: as histórias ocorrem no mundo fantástico de Faerûn, descrito no cenário de campanha de RPG Forgotten Realms (Reinos Esquecidos). Elas também foram inspiradas em diversos módulos de aventuras criados para o jogo Dungeons & Dragons (Masmorras e Dragões). Todos os direitos sobre estas marcas pertencem à editora Wizards of the Coast, não sendo minha intenção violá-los. Estes textos são uma ficção de fã (do inglês, fan fiction ou FanFic) e não objetivam qualquer lucro.

Para saber mais:

  1. Capítulo Anterior – A Busca
  2. Reinos de Aventuras, histórias de fantasia: onde explico o modo como pretendo publicar esta série no blog.
« Posts Antigos Posts Recentes »

© 2024 Escriba :

Tema por Anders NorenUp ↑