Primeiro romance do gaúcho Leonel Caldela, O Inimigo do Mundo é uma fantasia ambientada em Tormenta, um cenário de campanha de RPG criado em 1999 por Marcelo Cassaro, Rodrigo Saladino, e J. M. Trevisan.
Descoberto pelo último, Caldela foi convidado a transpor o universo dos jogos para a literatura. O resultado é uma obra divertida, mas com potencial desperdiçado.
Em Arton, onde o real e o fantástico coexistem, um assassino sádico e incompreensível está à solta. Em seu encalço estão nove aventureiros com aptidões e motivações próprias. Paralelamente, em planos superiores, poderosas divindades acompanham a tudo com desvelo. Que consequências terríveis uma mera busca por justiça poderá desencadear sobre o mundo?
A premissa é evidenciada nos capítulos iniciais, que revelam a influência dos deuses entre os mortais, a crueldade e a natureza dúbia do assassino, e as particularidades dos nove. O livro é dividido em duas partes – Perseguição e Ruína – no decorrer das quais são apresentados (muitos) detalhes do cenário e (poucos) do enredo.
Há uma preocupação excessiva em destacar as características que diferenciam este mundo de fantasia. Assim, a história é deixada de lado por algum tempo, com os protagonistas sendo conduzidos com o aparente propósito de expor peculiaridades de Arton.
Isso prejudica o interesse por seus esforços, principalmente na primeira parte. Assim, sobressai-se o assassino conhecido por “o Albino”, as divindades – e estes figuram nas cenas mais envolventes (e repulsivas) –, além de alguns coadjuvantes que surgem e somem a todo instante.
A trama envolvendo os deuses também merecia atenção, visto que seus papeis nos eventos limitam-se a discussões, conchavos e uma ou outra bênção velada à missão do grupo. Considerando-se o prólogo e toda a interação que ocorre entre as divindades, espera-se uma participação mais ativa.
Assim, o que resta ao término da leitura das mais de 400 páginas é a dúvida: o que poderiam os deuses ter feito de concreto contra ou a favor do inimigo do mundo quando este sempre esteve além do controle de qualquer um deles? Infelizmente, esta não é a única indagação que permanece na cabeça do leitor.
As expectativas são um joguete nas mãos de Caldela, que as distorce com maestria, o que é uma grata surpresa. Contudo, é frustrante que isso não ocorra no momento mais crucial: a conclusão. Simplória e com buracos, esta é satisfatória e só – toda a segunda parte teve o potencial pouco trabalhado.
Com relação à narrativa, a morosidade incomoda em alguns pontos. A questão é que o autor se mostra prolixo quando um ritmo mais acelerado seria ideal e muito sucinto quando se espera algo mais contemplativo.
A ausência deste equilíbrio fica evidente quando comparadas as duas partes do livro: os eventos se desencadeiam mais rápida e superficialmente nos capítulos finais. A impressão é que estes teriam sido escritos às pressas.
As descrições são bem feitas, mas algumas batalhas são meio confusas – é comum ter a sensação de que algo escapou à atenção. Além disso, há muitas cenas difíceis de visualizar, como aquela onde um personagem investe em carga, vomita e, a seguir, desfere um golpe mortal no inimigo, nesta ordem.
A despeito destes pontos, Caldela demonstra grande talento e familiaridade com as palavras. A abordagem adulta e realista, algo pouco comum ao gênero de fantasia, é uma de suas qualidades. Em diversas passagens, ele não hesita em dar aos protagonistas ares de meros mercenários, provocando uma inesperada antipatia por alguns.
Despertar sensações de desconforto, aliás, é o que escritor faz muito bem, como na cena em que um dos personagens assassina alguém “indefeso” só para ganhar vantagem numa luta. Ele também não hesita em demonstrar o quão frágil é a vida num mundo de espada e feitiçaria onde os heróis podem morrer – mas talvez ele tenha demonstrado este aspecto cedo demais.
Passagens como estas dão sabor a O Inimigo do Mundo, evitando que a história fraca o torne um fracasso. Outro trunfo é a caracterização dos personagens. É lamentável, porém, que os antagonistas e coadjuvantes roubem a cena e sejam tão mais cativantes que os personagens principais.
As divindades do panteão são singulares, belas e complexas. As descrições de seus reinos e do modo como estes são influenciados pelas personalidades de seus regentes demonstram um trabalho inspirado. O Albino é enigmático e perigosamente curioso sobre o mundo a sua volta, intrigante em suas ações e pensamentos indecifráveis.
E por falar em vilão, a presença de um velho conhecido dos fãs de Tormenta não se justifica e surge meio deslocada, quase imposta para arrancar um sorrisinho dos leitores familiarizados com o cenário (ok, eu confesso que sorri). Alguns eventos em torno desta figura, bem como do encontro entre os noves aventureiros e sua caça, também ocorrem sem maiores explicações.
Há outros coadjuvantes muito curiosos que, certamente, mereciam mais espaço no livro – e, dentre estes, um bardo misterioso e uma bruxa assustadora deveriam ter históricos mais detalhados, já que sua participação é tão fundamental.
É estranho que os protagonistas jamais se revelem figuras tão incríveis. Todavia, há quem se destaque entre eles. A sacerdotisa da deusa da vida, Nichaela, tem uma relação conturbada com o restante do grupo graças ao seu repudio a violência, mas se vê obrigada a questionar sua crença.
O mago Rufus é complexo em sua “insignificância” e sofre por suas atitudes (ou sua ausência), reunindo em si vários aspectos negativos do ser humano.
Um personagem que pouco convence, a princípio, mas que ganha contornos mais instigantes é o líder do grupo, o guerreiro Vallen. Contudo, isto acontece tão próximo ao desfecho que é difícil importar-se muito com ele ou com seu relacionamento com Ellisa, que surge como uma aborrecida guerreira com um passado traumático previsível.
Os demais são estereotipados a ponto de sequer merecerem muito destaque na trama. Particularmente, considero Gregor Vahn, o paladino do deus da ressurreição, o mais fraco e desinteressante, e seu “segredo” é trivial.
Caldela fez uma boa estreia com O Inimigo do Mundo. No entanto, considerando-se apenas este livro, referir-se a ele como “Bernard Cornwell brasileiro” me parece exagerado – exceto se a razão para a comparação for o estilo cru, visceral – e, claro, as paredes de escudos.
O maior mérito do autor foi dar vida a um mundo que já existia na cabeça de milhares de fãs do cenário, e ele o fez utilizando-se de cores novas e próprias, sem destruir a idealização de muitos. Isto explica, ainda, a razão pela qual a obra é tão aclamada como uma das melhores fantasias nacionais – não é.
O Inimigo do Mundo é, no máximo, divertido, e isto graças, principalmente, aos personagens, pois a história é fraca, esburacada e não entrega uma boa conclusão – a segunda edição traz um conto extra que surge como uma tentativa de corrigir esta questão, mas isto deveria ter sido feito na trama, não num remendo.
Cabe dizer que este é o primeiro volume de uma trilogia ambientada em Tormenta; O Crânio e o Corvo e O Terceiro Deus são os próximos livros da série, onde, provavelmente, questões em aberto (e o futuro incerto de certos personagens) devem ser abordadas. Ainda assim, para um livro de 400 páginas, O Inimigo do Mundo promete muito e entrega pouco.
Assim, eu concedo 3 penas-tinteiro (ou estrelas).
E esta é a humilde opinião de um escriba.
Para saber mais:
- Leonel Caldela: site oficial do escritor.
- Caldela no Twitter: siga-o e veja o que ele tem a dizer.
- Caldena no Facebook: perfil do autor.
- Caldela no Skoob: veja as obras já publicadas pelo autor e torne-se um fã na rede social de leitores.
- Entrevista: Leonel Caldela num bate-papo muito interessante com o escritor Ademir Pascale.
- O Inimigo do Mundo: informações sobre o livro no site da Editora Jambô, onde também é possível comprá-lo.
- Tormenta RPG: informações sobre a mais nova versão do cenário no qual O Inimigo do Mundo é ambientado.
- Fórum de Tormenta: conheça o cenário a fundo nas discussões do fórum oficial no site da Editora Jambô. Alerta de spoiler: há informações sobre este e outros romances ambientados no cenário.