Não sei bem como aconteceu, não me lembro. O mundo ao meu redor era lúgubre, cinzento, sinônimo de sofrimento e horror. Um tapete macabro de manchas e destroços estendia-se pela estrada úmida, conduzindo à forma arruinada do caminhão tombado.
O choque e a indignação se revelavam claramente nas faces de todos: moradores da região, motoristas que aguardavam a liberação do trânsito, membros das equipes de resgate. Somente eu tinha a expressão serena.
Próximo aos veículos de emergência, uma figura fitava o vazio com ar apalermado; notei um filete rubro a escorrer do alto de sua cabeça. Alheio à fúria que lhe era dirigida, ele parecia assimilar as consequências de sua imprudência. Testemunha solitária da tragédia, talvez até revivesse em algum lugar da consciência os momentos que a antecederam. Mas isso pouco me importava. A razão de eu ainda estar ali jazia metros abaixo da encosta à beira da rodovia.
O ônibus era uma sucata, um monte de ferro retorcido disforme. Por toda parte no terreno barroso se faziam notar mochilas, cadernos, uniformes. Aquela fora outra de tantas excursões de campo que eu havia promovido. Tinha sido educativa e, principalmente, divertida, como os passeios ecológicos devem ser. Quem imaginaria término tão brutal, a perda de tantas vidas?
A lembrança veio novamente, ligeira, retratando nitidamente a imagem do momento antes do turbilhão e da escuridão absoluta: despreocupadamente, todos dormiam um sono do qual, mal sabiam, jamais iriam despertar. Que infortúnio condenava-me a reviver instante tão triste e negava-me conhecer o milagre pelo qual minha vida fora poupada? Se aquilo era tudo o que a memória tinha a revelar, então o passado não tinha maior valor que o presente.
As horas se alongavam e eu observava o trabalho de resgate, sereno, esperançoso. Parte dos observadores se dispersou, equipes de televisão e rádio chegaram e partiram; o caminhoneiro atormentado foi levado pelas autoridades para a própria proteção. Contudo, eu permaneci, acompanhando a retirada de cada corpinho destruído; e quando o último foi resgatado, eu me aproximei, agarrando-me a um resquício de esperança.
Havia algo incomum – e, no entanto, familiar – naquele corpo. Somente ao reconhecer nele minha própria feição arruinada e inerte é que pude, enfim, compreender.
Nenhum milagre ocorreu naquele dia.
Este conto é o resultado de um tema de redação proposta na sala de aula de um curso preparatório. O texto deveria tratar de alguma emoção intensa e envolver, no mínimo, dois personagens; estas eram as únicas orientações. Obviamente, não pude evitar acrescentar uma pitada de ingrediente fantástico.
Caminhava pela estrada da solidão. Seguia sem destino, pé ante pé, cabisbaixo, enclausurado num aperto acolhedor de braços envolventes. Não notaria coisa alguma, ainda que houvesse o que notar. Por toda parte, silêncio e sombras, como numa noite sem luar, sem estrelas. Por um tempo indefinido, imperceptível, era ele em seu caminho.
Uma faísca de consciência deteve seus passos. Percebeu as trevas e um turbilhão arrasou-lhe o peito. Dúvidas brotaram em sua mente. Falou, gritou, mas não havia som. Em volta, nada que oferecesse respostas. Foi ao chão, trêmulo, recolhido na frágil proteção de um abraço. Era um homem em meio à imensidão do vazio.
A esperança dourada cortou a escuridão. Tocando-o e deslizando por todo o corpo, o fulgor o acalentou. Sentiu-se flutuar e, sem questionar, entregou-se à luz. Carregado por esta, deleitou-se na agonia do negrume, que se recolhia, afugentado pelo esplendor que lhe tomava o lugar. No inesperado raiar do dia, o beco lhe foi revelado.
Ele distinguiu os detalhes do quadro pintado diante de seus olhos por mãos etéreas. O tapete de pedras era uma fronteira sinuosa entre o antigo e o novo, o morto e o vivo. As construções que o ladeavam reforçavam o contraste entre ruína e prosperidade. O decrépito acinzentado à esquerda e a opulência verdejante à direita pouco lhe importavam.
À altura de uma varanda na qual não se atreveria a pôr os pés estava o foco de sua atenção: uma lâmpada. Dali teria irradiado a luz que atraíra? Como poderia ser, já que estava apagada? Reparou no céu do que deveria ser uma manhã ensolarada, e estranhou sua palidez. O sol não estava em parte alguma, tampouco havia nuvens.
A serenidade perene o incomodou. Olhou ao redor em busca de algo mais, porém, o beco era tudo o que havia. E qualquer direção para a qual se voltasse reservava a mesma paisagem: um mundo autocontido do qual não era capaz de escapar. Trocara uma prisão por outra. Recusou-se a aceitar; queria crer que havia um propósito pra sua presença ali.
Na quina da construção mais afastada, uma estrela resplandeceu, revelando contornos gentis e femininos. A beleza daquela mulher estava além do que meras palavras poderiam descrever. Não estava nua, tampouco vestida. A luz a envolvia e constituía; estava presente na alvura da pele e nos cabelos argênteos. O rosto era um véu branco; apenas se viam os olhos cristalinos.
Contemplou aquela dama saída de contos de fada por uma eternidade. Encarando-a não com lascívia masculina, mas com fascínio infantil, ele compreendeu que sua incandescência a tudo iluminava. Ela o confortara e salvara do escuro. Inconscientemente, deu alguns passos em sua direção, como que seduzido por seu fascínio.
A dama deu-lhe às costas, o rosto misterioso encoberto. Silenciosa como a morte, ela flutuou ao fim do beco e trespassou um portão de ferro negro. O homem deteve o passo, levou a mão ao peito e sentiu o frio familiar subir-lhe pela espinha. Quando a realidade desmoronou ao seu redor, desesperou-se, pois soube que o vazio retornava.
Disparou pelo beco, evitando os escombros e as sombras demolidoras que se lançavam sobre seu corpo. O céu outrora pálido se estilhaçava e por entre suas frestas entrevia-se a escuridão ávida. Clamou pela luz que se afastava, rogando para que o salvasse novamente. Parada numa escada, a dama o observou para depois desaparecer por uma porta.
O mundo estremeceu. Reunindo a força de que dispunha, o homem venceu, num único salto, o portão negro e as escadas. A luz moribunda o tragou antes que a porta pela qual passara a dama se fechasse por completo. Teve a clara impressão de ouvir o urro de fúria e frustração da escuridão que engolfava o beco.
Por toda parte, silêncio e luz.
Tudo era radiante. Não estava só. Adiante, de pé em meio à plenitude branca e azul, estava a dama do beco. Aproximou-se com passos calculados, temendo outra fuga. Mas não havia para onde ir naquela imensidão. Irônico como o vazio também dominava ali. Mas era diferente, pois se sentia sereno e em paz.
A dama estava de costas, mas respondeu ao toque de sua mão – sua pele era como seda. De perto, sua figura era ainda mais exuberante, mesmo com aquele véu. Ela retribuiu-lhe o toque, acariciando-lhe a face esquerda com carinho. Estranhou o toque frio. Onde estava o calor que lhe salvara das trevas? Afastou um passo quando ela levou as mãos ao próprio rosto, pronta a revelar-lhe seu mistério. Mas outro brilho intenso o cegou.
A luz feriu-lhe os olhos. Coçando-os, ainda pôde ouvir o som de cortinas sendo afastadas. Na janela brilhava o sol de uma nova manhã. Não estava só. Aos poucos pôde distinguir a imagem de uma mulher de cabelos escuros presos por uma touca gasta. Reconhecendo a mãe, afundou a cara nos travesseiros.
Tivera outro sonho, mais um entre tantos. Não entendia porque sonhava com aquelas coisas tão estranhas. E como poderia? Tinha somente cinco anos e mal compreendia o significado do mundo ao seu redor. Ele até falara com os pais na esperança de que lhe explicassem, mas eles nunca o faziam; e pior, ainda o censuravam.
Culpavam os desenhos violentos e irreais na televisão, e também as revistas e livros de temas “estranhos” que tanto adorava. Diziam para não dar atenção às histórias bobas de amiguinhos. Eles faziam de tudo para tranquilizá-lo, sem sucesso, pois ignoravam que os sonhos tinham se intensificado desde o seu aniversário e da posterior morte do avô.
Confiando na família, ele seguia sua vida, apesar de incomodado com as sensações tão reais que experimentava durante o sono, toda noite. Sabia que um dia tudo passaria. Quem sabe até parasse de ler suas revistas por um tempo. Pensando nisto, ele atendeu aos apelos da mãe e foi se arrumar para a escola, pois não poderia se atrasar.
Poucos dias depois, sentado à mesa de café da manhã, o pai da criança abriria um jornal. No caderno policial, ele veria uma matéria sobre o corpo de uma jovem encontrado caído num beco. Não haveria pistas sobre o que lhe acontecera, mas o texto traria a foto de uma moça loura, de pele muito alva, trajando uma camisola longa e branca. Deitada sobre o ventre, não se poderia ver sua face, mas a poça de sangue seria distinguível.
O pai faria uma careta, mas logo não pensaria mais sobre aquilo. Fecharia o jornal ao notar a aproximação do garoto, pois não gostaria de deixá-lo ainda mais impressionado. Sentados em família, todos comeriam antes de seguir para suas atividades, como faziam todo santo dia.
Para saber mais:
Exercício de Criação 1: proposta de escrita do site Gambiarra Literária no qual este conto foi inspirado.