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Filme Comentado: A Viagem – Cloud Atlas (Pt.2)

Saiba antes de ler: esta é a segunda parte do texto sobre o filme A Viagem. Para melhor apreciá-lo é essencial a leitura da primeira parte, que pode ser conferida aqui.

Meu desencanto com o filme foi motivado, principalmente, pela comparação entre as obras. Não me entendam mal, afinal, eu gostei do filme. Mas ele não correspondeu exatamente às minhas expectativas; queria ser surpreendido, ver algo que mal consigo definir; eu esperava mais. Quando deixei o cinema, ainda estava incerto sobre o que havia compreendido do filme. Pensei que talvez não tivesse sido capaz de assimilar algo secreto, significados ocultos, um apelo humano.

Talvez desejasse perceber conexões mais fortes entre as histórias do que um simples livro que é lido ou um filme que é visto séculos depois. Não acho que a influência desses pequenos legados tenha sido bem trabalhada pelos Wachowski, pois o elo parece sutil, tênue demais na maioria dos casos.

Por exemplo: o filme sobre a vida do editor Cavendish, assistido no futuro pelo clone Sonmi-451, tem impacto marcante em sua história; por outro lado, o manuscrito do romance sobre a vida da jornalista Luisa Rey não afeta em nada os eventos que envolvem Cavendish e suas atribulações no asilo. Da mesma forma, qual é o valor do diário de Adam Ewing para a curta vida do músico Robert Frobisher?

Sobre a história deste, houve ainda algo intrigante e com potencial ignorado pelos roteiristas: como explicar que o compositor Vyvyan Ayrs tenha sonhado com um lugar cuja descrição é bem semelhante ao da lanchonete onde trabalha, no futuro, o clone Sonmi-451?

Resta-me supor que tratam-se de falhas da adaptação. Talvez no livro tais ligações sejam mais palpáveis, pois no filme, a maioria parece limitada à mera presença. Somos tomados pela agradável sensação de reconhecimento – ó, ele está lendo o diário do advogado da primeira história –, mas não é possível extrair mais nada dessas relações.

Ei, aquele é o Tom Hanks reencarnado?

A questão da reencarnação também empalideceu. O troca-troca de atores nos papéis me levou a imaginar que todos os protagonistas e antagonistas recorriam nas diferentes linhas do tempo, o que não ocorre. Como no livro, só os portadores da marca de nascença em forma de cometa representam uma mesmo alma reencarnada.

Pode-se interpretar que o espectador acompanha a trajetória (ou a viagem. Sacaram? Hein, hein?) desse espírito através das eras – um ponto de vista que torna o filme simplista demais. Por outro lado, como demonstrado no infográfico abaixo, é interessante constatar que este ser se encaixa em diversos arquétipos nas diferentes épocas, o que pode representar uma espécie de evolução natural.

Clique na imagem para ver maiores detalhes (o carregamento pode demorar um pouco).

Assim, além deste espírito reencarnado, o que reincide no filme são situações e arquétipos. O vilão da história de Luisa Rey não é o vilão da história de Timothy Cavendish reencarnado, é apenas o mesmo ator representando a reincidência daquele arquétipo.

Embora ocasione tal confusão, a alternância de atores tem um lado positivo, pois gera uma sensação de familiaridade com os personagens, como se o espectador os conhecesse de outras vidas. Isso também o permite identificar-se com o protagonista-mor (a alma reencarnada) em suas experiências.

À luz dessas considerações, a recorrência do amor surge forçada e inverossímil em algumas histórias. Por que o doutor Isaac Sachs se apaixona magicamente por Luisa Rey como se seu sentimento fosse um legado de vidas passadas quando isso nunca fica claro? E como explicar o fato de que ela não parece corresponder a tal paixão?

Afinal, vale a pena assistir ou não?

O filme é uma experiência muito mais interessante quando se foca o portador da marca em forma de cometa. Isso é especialmente verdadeiro na história da jornalista Rey: ela reencontra o homem que amou, emociona-se com as cartas que escreveu, e escuta a música que compôs em sua encarnação anterior.

A Viagem é um filme ambicioso por ousar contar uma, ou melhor, seis histórias de modo tão pouco convencional. Neste quesito, não creio que os Wachowski tenham falhado. Contudo, ao tomar conhecimento da fonte e das diferenças entre esta e a adaptação, toda a produção parece se reduzir a um simples exercício de estilo.

Dois adendos: primeiro, a chance de ver Tom Hanks como um escritor psicótico e Hugo Weaving (o eterno agente Smith) travestido de enfermeira compensa qualquer deficiência do longa; segundo, imagino se os críticos não menosprezaram tanto o filme só para se utilizarem da piada pronta proporcionada pelo título aberrante da versão nacional.

Há muito mais a ser dito sobre Cloud Atlas (o livro). Para os curiosos recomendo uma conferida nos links abaixo.

Para saber mais:

  1. Cloud Atlas Wiki: site colaborativo que objetiva ser a maior fonte de referência sobre o livro de Mitchell e o filme dos Wachowski (em inglês).
  2. Análise de Cloud Atlas: o autor deste blog escreveu uma série de posts onde esmiuça diversos aspectos da obra e de cada uma de suas histórias (em inglês).
  3. Diferenças entre as histórias do livro e do filme: artigo excelente traçando paralelos entre as histórias de ambas as obras (em inglês).
  4. David Mitchell sobre A Viagem: o escritor de Cloud Atlas comenta sobre a adaptação cinematográfica de sua obra no The Wall Street Journal (em inglês).
  5. Jogo da Adivinhação: no site da revista Veja há um jogo (bem bobinho) inspirado no filme; o objetivo é relacionar atores e personagens.

Filme Comentado: A Viagem – Cloud Atlas (Pt.1)

Saiba antes de ler: este post ficou tão grande que foi dividido em duas partes complementares. Talvez o leitor não tenha paciência para ler tudo, mas eu precisava escrever sobre esse filme.

“Passado. Presente. Futuro. Tudo está conectado.” Esta é a instigante premissa de A Viagem, a nova produção dos irmãos Wachowski (Matrix) que estreou recentemente nos cinemas. Na expectativa de uma experiência, no mínimo, surpreendente, fui conferi-la na semana passada.

Ainda que a história não tenha sido exatamente a que eu tinha em mente, não me desapontei ao término de suas quase três horas. A decepção veio no dia seguinte.

Deixei o cinema sem saber exatamente o que pensar. Decidido a tentar decifrar o filme, topei com o livro que o inspirou e foi aí que perdi muito do meu fascínio. Antes de expor as razões de meu desencantamento, porém, quero compartilhar considerações sobre ambas as obras.

Atenção: adiante há revelações sobre os enredos (spoilers).

Sobre o livro

Escrito pelo britânico David Mitchell e publicado em 2004, Cloud Atlas (Atlas de Nuvens, em tradução livre) apresenta seis contos que conduzem o leitor desde o Pacífico Sul do século dezenove até um futuro pós-apocalíptico longínquo. A obra é um quebra-cabeça. Primeiro, o autor inicia e interrompe cada um de cinco contos antes de sua conclusão. O sexto conto é o único narrado do princípio ao fim, quando, então, os seus antecessores são retomados em ordem cronológica reversa.

A grande sacada de Mitchell é encerrar cada conto com o protagonista lendo ou observando a história cronologicamente anterior a sua, o que estabelece o elo entre as narrativas – através de um diário ou de um filme, as histórias repercutem pelo tempo e o espaço. Deste modo, a viagem do leitor termina exatamente onde começou: no Pacífico Sul do século dezenove.

A estrutura do livro não é tão confusa quanto parece (clique para ver).

Estão presentes no livro esta interligação em forma de legado e a questão da reencarnação – a exceção de um, os protagonistas dos contos trazem uma marca de nascença que os identifica como uma mesma alma incorporada em outra vida. Mas esses temas não são o foco de Cloud Atlas.

Segundo o autor, a obra trata da predação de “indivíduos por indivíduos, grupos por grupos, nações por nações, tribos por tribos” que, retratada em diferentes contextos (épocas), explicita seu caráter eterno, recorrente. Mitchel diz ser possível inferir tal interpretação do título: “as nuvens seriam as manifestações mutáveis do Atlas, que por sua vez representa a natureza humana imutável” (?!). A reencarnação, por exemplo, “é só um símbolo (…) da universalidade da natureza humana”.

Em se tratando de recorrências, há as que se destacam ao longo da obra: os movimentos de ascensão e declínio (explicitas na forma de escaladas e quedas ou implícitas em epifanias morais); a contestação da veracidade das histórias pelos protagonistas que as conhecem; e a citação ao número seis (a música que é um sexteto, o personagem que é chamado Sixsmith, a dívida de sessenta mil libras, os seis catecismos dos clones).

Sobre o filme:

Cloud Atlas era considerado por muitos como um livro impossível de adaptar para o cinema. O próprio Mitchell reconheceu que sua estrutura aninhada, de uma história contida em outra, era rígida demais para a telona. A solução encontrada pelos Wachowski foi apresentá-las em paralelo, intercalando-as nos momentos em que as similaridades de situações explicitavam as ligações e recorrências – por exemplo, nas cenas de confronto contra o vilão de cada história.

A sugestão de ressurreição também está presente aqui, mas de modo exacerbado – e até mal pensado. Não só há ênfase na marca de nascença que surge em diferentes protagonistas ao longo das épocas, mas os atores também se tornam recorrentes, alguns interpretando personagens completamente diferentes, outros representando sempre um mesmo arquétipo (o vilão, o oportunista).

Os atores se revezam, surpreendem e divertem em papéis diversos.

Em Cloud Atlas, dois contos apresentam certo aspecto de romance: a do jovem músico e a do clone que se revolta contra o sistema. Em A Viagem, o amor está em toda parte e surge como mais uma característica que interliga as histórias – e a maioria dos desfechos é encerrada com um par romântico estabelecido. Assim, o filme torna-se uma experiência mais sentimental que o livro.

Essas são as principais diferenças entre as obras. Obviamente, há outras que incluem desde a ênfase na luta pela liberdade, a mudança do nome de ao menos um personagem, a remoção de trechos existentes e a inclusão de outros inexistentes no livro de Mitchell (veja na parte dois do texto o link para um interessante artigo que identifica estas e outras diferenças).

Afinal, o que você achou do filme, ô do capuz?
Leia a parte 2 e descubra.

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